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O homem nu

Substituição do “mundo” pelo corpo, um corpo problemático que resume em si todas as esperanças e ameaças, explica a insistente interação entre arte e ciência hoje

No dia 11 de janeiro de 2001 o jornal “The Guardian” anunciava na primeira página que hospitais ingleses estocavam, sem o consentimento dos pais, 50 mil órgãos de crianças mortas. Embaixo trazia a foto de um homem nu e o relato de sua absolvição da acusação de perturbar a ordem pública, desnudando-se nas ruas para defender a nossa “humanidade”.

Em princípio sem relação entre si, essas notícias são contraponto uma da outra e demonstram como a sociedade contemporânea vem pondo os corpos à prova. Com a ablação dos órgãos são questionadas, de maneira perversa, nos próprios corpos, noções como liberdade e propriedade que a modernidade ali ancorara 1.Com o desnudamento, o corpo que a sociedade moderna situou na esfera privada emerge no domínio público, mas não visa, na sua nudez, a desafiar a norma ou pregar a volta a um estado natural. Apenas reivindica sua “condição humana”, como se recaísse sobre a materialidade do corpo ou sobre sua suposta “inocência” a luta contra tudo o que atinge o homem, não exatamente no corpo, mas no que ele tem de imaterial – a sua humanidade.

1 Recentemente o debate sobre a lei de doação de órgãos repercutiu entre nós essa ordem de questões, e o aspecto traumático de que se revestiu tem a ver com a confusão operada entre a “posse” do corpo e a sua “propriedade pública”: o Estado decide para quem vão meus órgãos.

De um lado o corpo-mercadoria, suas partes “aproveitáveis” rentabilizadas pela ordem vigente, o Estado e suas instituições: a lei, a ciência, o hospital; de outro a sua exposição, não como mercadoria ou “propriedade pessoal” de um “sujeito”, mas como “bem comum” por meio do qual os homens podem se reconhecer como tais. As duas notícias trazem à tona uma série de questões insistentes na virada de milênio, em que se celebrou tanto a desmaterialização, com a realidade virtual, quanto o prestígio dos corpos por meio das técnicas de aprimoramento físico – sem falar nas promessas de “melhoria genética”.

Esses dois pólos que tensionam o corpo, a desmaterialização e a valorização física, se inscrevem no que o crítico português José Bragança chamou de “corpo utópico”, resultado da crise das utopias e da disseminação do “impulso utópico” por toda a experiência2. Bragança lembra a centralidade da categoria “mundo” na utopia: ela busca afetar o “real” no seu conjunto para mostrar como sua crise afeta a imagem racionalista de um “mundo” alternativo, de um outro espaço.

2 José A. Bragança de Miranda, “Corpo Utópico”, texto inédito apresentado no colóquio “Tecnologia e Vida Contemporânea”, Convento da Arrábida, Portugal, 25 de setembro de 2000.

A constituição de um novo espaço se faz então necessária, e o corpo assume esse papel por ser a categoria mais resistente da metafísica ocidental. Para Bragança o “corpo utópico” implica não só a substituição do “mundo” pelo corpo, mas uma “crise” do próprio corpo, que explode e se dissipa ao tomar o lugar do mundo.

Um corpo que resume em si todas as esperanças e ameaças, que traz a chave da felicidade, mas se precipita para a destruição, um corpo problemático. Talvez a substituição do “mundo” pelo corpo esclareça a urgência de o interrogar e de o explicar e justifique a interpelação, insistente hoje em dia, da ciência e da arte como práticas que sondam potencialidades e exploram possibilidades.

Não por acaso, ao mesmo tempo em que o jornal “The Guardian” dava as duas notícias, a galeria de arte londrina Hayward mapeava o percurso entre arte e ciência com a exposição “Spectacular Bodies – The Art and Science of the Human Body from Leonardo to Now” (Corpos Espetaculares – A Arte a a Ciência do Corpo Humano de Leonardo até Hoje). Apostando num “conhecimento subjacente” à visão de artistas e anatomistas, 300 peças de museus de arte ou ciência (de Da Vinci, Bronzino, Suzini, Zumbo), além de fotografias etnológica e antropológica, de frenologia e craniologia (Le Brun, Courbet, Holbein, Galton e outros), expostas didaticamente, eram “pontuadas” por trabalhos, também ligados ao campo médico, de oito artistas contemporâneos (entre eles John Isaacs, Marc Quinn, Beth B., Tony Oursler e Bill Viola).

Com o desenvolvimento da genética e da informática, a ciência passa a focalizar o corpo do ponto de vista molecular ou o transforma num híbrido com suas próteses e transplantes; no plano social, novos comportamentos passam a valorizar o “desempenho ” físico, fazendo do corpo algo a ser “construído”

Num percurso inverso, três meses antes o museu científico americano Exploratorium, de São Francisco, abrigara praticamente os mesmos objetos e artefatos na exposição “Revealing Bodies”, justaposição da arte e ciência médica do mundo antigo aos nossos dias que viu o corpo como um construto cultural e científico. Ali o espectador tanto podia contemplar figuras de rituais africanos quanto explorar, por meio das tecnologias mais recentes, o interior do próprio olho, ver numa tela a imagem do calor de seu corpo ou folhear um “livro” cujas páginas traziam impressas as imagens dos corpos “laminados” de um homem e uma mulher reais.

Spetacular Bodies - Instalação

Essa interlocução entre ciência e arte por intermédio do corpo não é recente, mas vem atingindo novos patamares à medida que as premissas da arte e da ciência se transformam. Ao final do século 19 e com o modernismo, o corpo como forma anatômica e função física quase desaparece da arte, enquanto sua representação para fins científicos -que desde o Renascimento atendera igualmente a fins estéticos e teológicos- perde campo para o registro fotográfico.

Só nos anos 60-70 ele teria de novo destaque num contexto de luta pelas liberdades pessoais. Foi esse clima de contestação política e artística que deu origem à performance como ação do artista sobre o próprio corpo – gesto que, além de intensificar a atenção da arte para o corpo, viria a ser perpetuado com a descoberta do vídeo. A incorporação do registro videográfico pela arte se deu paralelamente à adoção, pela ciência, das novas tecnologias da imagem e da informática, abrindo novos campos de conhecimento e fazendo com que artistas e cientistas passassem a recorrer aos mesmos instrumentos técnicos.

O corpo com que a arte se defronta a partir dos anos 80 não é mais o mesmo dos anos 60-70, sede das liberdades, lugar da identidade e de seu questionamento, meio de expressão e inscrição do espaço-tempo. Com o recente desenvolvimento da genética e da informática, a ciência passa a focalizá-lo do ponto de vista molecular ou o transforma num híbrido com suas próteses e transplantes. No plano social, por sua vez, novos comportamentos passam a valorizar o “desempenho” físico, fazendo do corpo algo a ser “construído” por meio de técnicas de modelagem.

Não é, mais uma vez, por acaso que dois trabalhos também exibidos na virada do ano tratem desse corpo problemático e restituam, por meio dele, a convivência mais recente entre arte e ciência. Baseados na “Santa Ceia” de Leonardo da Vinci e retomando seu título, o de Andy Warhol foi exposto no museu Guggenheim do Soho, em Nova York; o do inglês Damien Hirst apareceu na exposição “Open Ends”, sobre a arte a partir dos anos 60 no MoMA de Nova York e ainda na galeria londrina “Sadler’s Wells”.

O trabalho de Warhol, de 1985-86, propõe séries de serigrafias, telas e colagens a partir da imagem do mestre italiano. O de Hirst, de 99, é também uma série, mas a imagem foi substituída por retângulos monocromáticos ou bicolores, como rótulos de medicamentos, com os nomes de alimentos e de seus componentes químicos. Ao recorrerem a esse verdadeiro ícone da arte ocidental, os controversos artistas têm com certeza em mente a transfiguração do corpo humano em divino, a sua mutação do sagrado ao profano e a apropriação pela ciência.

Uma das telas de Warhol refere-se com ironia ao prestígio do culturismo, colocando a imagem do Cristo ao lado de um corpo musculoso e, como um comando do primeiro, a frase: “Be a somebody with a body” (Seja alguém com um corpo). Evidentemente não falta ambiguidade nessa evocação de um corpo não mais habitado pelo divino, mas “valorizado” (um “alguém”) na sua constituição física, se ela é feita por um artista que destacou a superfície em detrimento do conteúdo e inaugurou a serialização como negação do “um”.

Se Warhol vê o corpo sob suspeita, para Hirst não há mais corpo. Nem a corporeidade do alimento subsiste nesse “cardápio desmaterializado”, mera sequência de “nutraceuticals” que anuncia, pela sua ausência, um corpo “medicalizado” que substituiu pela ciência a antiga interlocução com o divino. O alimento, que há muito não se destina mais ao espírito, agora se desintegrou e, na sua monotonia e utilitarismo, tampouco visa ao paladar, mas à mera manutenção do funcionamento do organismo.

Um corpo ao mesmo tempo manipulável e inapreensível, campo de luta entre forças contraditórias: quando o homem tira a sua vestimenta não é esse “mundo” que se desvenda?

Publicado in  Folha de São Paulo,Caderno +mais!, especial corpo dilacerado – corpo reconstruído. Domingo, 25 de março de 2001. 
Imagem na home: Detalhe de Marc Quinn. Emotional Detox. 1994-95.
Imagem no início do post: Caixa de madeira de William Bally, de 1831, contendo cabeças frenológicas utilizadas para o estudo do caráter humano.
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