Skip to content

Do teatro ao cinema: o jornalista de Nelson Rodrigues

Diabo da Fonseca – (…) e vou provar o seguinte, querem ver? Que é falsa a família, falsa a psicanálise, falso o jornalismo, falso o patriotismo, falsos os pudores, tudo falso! Viúva, porém honesta

Mesmo na boca do diabo e no tom da farsa, o desafio consegue resumir toda a descrença no mundo, todo o desencanto com a humanidade e todo o pessimismo desse autor que não só falou pela voz de seus personagens como criou, para si mesmo, uma personalidade semi-fictícia, tornando-se, também, quase um personagem. A família, a ciência moderna, o jornalismo, o sentimento patriótico, a moral burguesa – tudo vai de cambulhada no rol desta desaprovação generalizada: das ruínas da vida privada à falência da esfera pública, o teatro de Nelson Rodrigues mapeou um território de heróis que, numa inversão de escala, se consagraram pela sua canalhice ou pela sua mediocridade – quando não pelas duas juntas – pela estreiteza e pequenez de seu mundo, pelos seus preconceitos, por seus valores gastos ou simplesmente inexistentes.

Ao lado de uma coleção de profissionais: médicos, psicanalistas, delegados, funcionários públicos, o personagem do jornalista é uma das presenças mais constantes nesta que Décio Almeida Prado chamou de “imensa e repetitiva comparsaria” de que o dramaturgo se serviu para emoldurar os seus protagonistas. Inventores, venais, manipuladores da opinião pública – como notou este crítico – preocupados unicamente com a tiragem de seus jornais e cínicos, sempre cínicos, os jornalistas inventados por Nelson Rodrigues não são os únicos canalhas confessos deste teatro e nem parecem, à primeira vista, muito distantes do personagem similar que o cinema criou e explorou quando teve estes profissionais na sua mira[1].

Esta visão corrosiva não tem origem, no entanto, na inspiração cinematográfica que, aliás, forneceu à linguagem teatral de Nelson, alguns de seus mais ricos e produtivos achados. Ela apenas estende, até esta parte da humanidade, o olhar que o dramaturgo voltou para a maioria de seus personagens. Do mesmo modo, ela não implica em nenhum tipo de crítica à imprensa como instituição – tarefa que se acomodaria mal num teatro voltado para a condição trágica da existência que preferiu recriminar, antes, a moral burguesa, os costumes, o mundo das aparências. O que não significa que o cinema, ou melhor, os estereótipos criados pelos filmes de jornalista tenham escapado à interminável “reciclagem” desse autor fascinado pelos clichês. Assim ele anotará, na rubrica que apresenta o redator-chefe Pardal, na peça Viúva, porém honesta: “usa tapa-luz de jornalista de cinema”. 

O universo da imprensa, no qual Nelson Rodrigues passou toda a sua vida, é uma presença reiterada em suas peças. E como se essa constante referência ao mundo da comunicação, assim como a insistência em personagens nele originados não bastassem, o dramaturgo ainda povoou suas crônicas com outros tantos jornalistas, reais ou fictícios, fazendo da imprensa – e estamos falando sobretudo da imprensa popular carioca – uma das fontes mais férteis da sua mitologia própria.

Maria Lúcia Campanha da Rocha Ribeiro menciona uma “contaminação ficcional” de que seriam vítimas os personagens do dramaturgo, cuja origem remonta ao exercício jornalístico cotidiano do autor. Captadas em situações “dignas de figurarem nas manchetes”, observava esta crítica, os personagens de Nelson ainda incorporam, no seu modo de se exprimir, “a objetividade e a concisão prescritas pela aceleração informativa” – são os famosos diálogos do dramaturgo – sendo sua composição também inspirada pela interlocução expressiva “com as artes e instrumentos estéticos diretamente emergentes da comunicação de massa”[2].

Com relação à presença dessa personagem na obra de Nelson, vale chamar a atenção, porém, para um fenômeno muito peculiar na literatura e no teatro do escritor; além dessa compleição adquirida no universo onde Nelson atuou e conviveu, foi antes de tudo o trânsito de seu teatro entre o mundo da comunicação e do mito – para o qual Décio Almeida Prado chamou atenção – que favoreceu a emergência do jornalista no teatro do dramaturgo. Nesse sentido, tal personagem não se limitará apenas a tornar presente o mundo da imprensa, do qual é um dos habitantes; ele será, antes de tudo, um elo destinado a assegurar a ligação entre este e o mundo do mito. Se, como notou o crítico, o cunho trágico do teatro rodriguiano manteve, mesmo sob a forma degradada, as figuras do coro e do oráculo[3], podemos afirmar que o jornalista de Nelson Rodrigues gravitará sempre no espaço destas duas vozes: ele será, na verdade e a um só tempo, o sintoma e o artífice da desqualificação destas duas instâncias que falam o mito e manifestam a fala do povo.

Mentiroso e manipulador, o jornalista de Nelson está associado ao que Décio Almeida Prado chamou de “flutuações da opinião pública” que, juntamente com as superstições suburbanas substitui, no teatro do dramaturgo, o destino trágico grego. Assim ele atuará, por exemplo, em Beijo no Asfalto, moldando de acordo com seus interesses escusos a opinião dos vizinhos e da família sobre o personagem principal. Além de ser o operador de um descrédito que atinge as vozes que aciona, o jornalista poderá ainda retomar – embora em tom menor – a voz do coro: é o que acontece, por exemplo, na chave da paródia, quando o locutor verborrágico reconta, na forma do kitsch, a história do bicheiro em Boca de Ouro. Muitas vezes o jornalista terá uma atuação mais incisiva ainda, interferindo diretamente na vida dos outros personagens, como acontece com o Arandir de Beijo no Asfalto: próximo do oráculo, ele não atenderá, no entanto, às diretrizes do destino, dobrando-se, antes, ao imperativo das manchetes e ao aumento das tiragens.

Se a presença do jornalista está intimamente imbricada no caráter trágico do teatro de Nelson Rodrigues, já foi bastante destacada pela crítica que a extração moderna de seus personagens, seu caráter urbano voltado para uma cultura do consumo e da informação favorecem a presença deste que é um dos principais agentes da modernização: como tal ele desafiará o comportamento acanhado ou os pruridos suburbanos dos personagens, e os aliciará para participarem de seus golpes. Tradutor da mitologia engendrada no cotidiano da periferia do Rio de Janeiro – sobretudo na provinciana e conservadora Zona Norte – para o universo moderno da comunicação, ele tirará proveito do falatório, das intrigas e fuxicos que estão na sua origem, pondo-os para “render” no plano da circulação do discurso da comunicação.

Por fim, o próprio caráter do realismo rodriguiano, que Luiz Artur Nunes descreveu como “realismo processado” na sua procura de desmistificar o que jaz além do “fundo falso das coisas”, também contribuiria para precisar, ainda mais, o foco da crítica à atividade do jornalista – esse criador por excelência de clichês e das fórmulas destinadas a perpetuar as aparências. Além de responder a essas exigências “constitutivas”, por assim dizer, do teatro de Nelson Rodrigues, a presença reiterada do jornalista foi também estimulada pelo fascínio do dramaturgo pelos personagens de extração popular, dos quais ele é um dos mais atraentes e pitorescos representantes.

Na confluência das duas vertentes desdobradas na obra do dramaturgo – o mito e a realidade – o jornalista nunca será o personagem principal, nem será “desenvolvido” como seus outros companheiros, permanecendo na sua função de mediador. Além desta função de intermediário entre dois mundos, ele ocupará ainda um lugar de destaque na articulação da dinâmica dramática, seja quando desencadeia a ação, como em Beijo no asfalto, seja quando aciona a narrativa, como no caso de Boca de Ouro. Mas se acreditarmos, com Maria Lúcia C. da Rocha Ribeiro, na “ambiguidade exemplar” do teatro rodrigueano, seu jornalista pode também ser visto como um personagem-chave para o entendimento deste teor crítico tão peculiar da obra do dramaturgo[4].

Boca de Ouro

A peça Boca de Ouro, de 1959, transformou-se em filme em l962 pelas mãos de Nelson Pereira dos Santos. Nela o repórter Caveirinha – e o nome já define todo um destino profissional – investiga a biografia do bicheiro Boca de Ouro, pondo em cena esta figura mítica da paisagem carioca. Venerado no subúrbio como hoje são os chefes do tráfico nas favelas, tanto a trajetória quanto a função do bicheiro lhe conferem, segundo a análise de Décio Almeida Prado, a estatura do mito: milionário, porém de extração e modos populares, portador da única chance de enriquecimento repentino, sua atividade faz aflorar, mesmo que na forma abastardada do jogo do azar, a figura do destino tão prezada na tragédia.

A peça tem início com a morte de Boca, ocasião para o dramaturgo expor toda a hierarquia jornalística, numa amostragem também exemplar da escala de valores privilegiados no seu teatro: o diretor do jornal, da casa da amante, decide a “posição do jornal” – tratar como “cancro” o bicheiro que o jornal elogiara no dia anterior; o redator-chefe, sempre um puxa-saco, transmite a ordem ao repórter ambicioso, em meio às piadas e insinuações maldosas de uma redação buliçosa: ele deve entrevistar Dona Guigui, ex-amante do bicheiro, e arrancar dela a história de um crime horroroso, destes que explodem em manchetes e arrebentam as tiragens.

Muitos já notaram a semelhança entre a peça de Nelson Rodrigues e o Cidadão Kane de Orson Welles. Como o repórter de Welles, Caveirinha é aquele que vai acionar as narrativas de dona Guigui, três delas, que variam segundo os afetos cambiantes da dona de casa ainda apaixonada pelo amante. Mas, diferentemente do primeiro jornalista, que se limita às perguntas objetivas e se reduz, na maioria das vezes, a uma sombra na tela, Caveirinha é completamente “over”: instiga e provoca, manipulando os sentimentos de dona Guigui, mete-se na história e a empurra para onde mais lhe interessa. É, aliás, a falta de escrúpulos do jornalista, seu cinismo e a sordidez com que explora os sentimentos alheios que ensejam o grande e achado da peça: o uso de sucessivos flash backs contraditórios (mais uma vez, como em Kane), que torna plausível a coabitação dos três relatos irreconciliáveis. Pois se cada versão apresentada contradiz a anterior, sem que o jornalista cobre coerência da sua fonte, é porque, dentro da tradição desse personagem rodrigueano, só lhe interessa o aspecto escandaloso da história. Muito menos do que a coerência narrativa ou a sua correspondência com os fatos, o repórter busca o sensacionalismo das revelações que, verdadeiras ou não, lhe garantirão sucesso e grandes tiragens.

Mas além desse repórter sem escrúpulos há ainda na peça um outro personagem, embora de presença menos marcada, ligado ao mundo da informação: é o locutor de rádio que cobre o enterro de Boca de Ouro e que, tratado no registro da paródia, traduzirá, em chavões jornalísticos, a trajetória do bicheiro. Esse personagem retomará, na peça, a voz degradada do coro, que já aparecera em Álbum de família por meio da intervenção cômica de um speaker, ali já caracterizado pelo autor como “uma espécie de opinião pública” a interferir na ação com comentários “de mau gosto hediondo” e “informações erradas sobre a família”.

O enfático locutor de Boca é da mesma estirpe desse substituto do coro e sua função: transpor para o vocabulário retumbante da comunicação instantânea a trajetória já consagrada do bicheiro, faz parte do mesmo processo de degradação de vozes da tragédia rodrigueana. Apesar da recomendação de Nelson para compor o locutor “de modo bem característico” segundo o radialista Oduvaldo Cozzi (mais uma figura do mundo real a inspirar as criaturas do dramaturgo), esse personagem não obedece, com efeito, ao molde realista de Caveirinha: de feitio caricato e com “adjetivação pomposa e vazia” (o Al Capone, o Drácula de Madureira…), sua função é traduzir (e reduzir), em oposições simplistas entre o bem e o mal, o mito suburbano para além de seu espaço de origem. Apesar do registro paródico, este personagem ainda permite que a peça recupere, em nome do realismo que seu autor também tanto reverenciou, a imensa popularidade do rádio no Brasil dos anos 50, pondo em evidência não apenas o imenso poder da transmissão ao vivo, como o seu tom mais simplista e redutor em relação ao da imprensa escrita.

O filme de Nelson Pereira dos Santos manteve essa visão do jornalista que seu homônimo forjou. Retirando de Caveirinha a narração dos feitos que fizeram de Boca um herói do subúrbio – tarefa que, de resto, Nelson Rodrigues não confiaria aos seus jornalistas – o diretor propõe um prólogo onde cria uma série de episódios que estariam na origem do mito. Apesar da sua inspiração cinematográfica neo-realista ter levado as cenas do filme para as ruas do Rio, onde os personagens do casal Leleco e Celeste se misturarão aos passantes anônimos, Caveirinha merecerá o mesmo tratamento dramático da peça, e será visto apenas em interiores – redação, casa de Dona Guigui. Cabe ao locutor, misturado à multidão na porta do necrotério, o único momento de encontro de um jornalista – afinal um profissional das ruas – com o público. Os closes repetidos dos rostos silenciosos e opacos dos curiosos ali reunidos, que não demonstram nenhuma emoção nem saber, atuam – como já foi destacado pela crítica de cinema – como uma espécie de “equivalente visual” do coro, evidenciando a separação e a solidão da voz do locutor (sua degradação, na verdade), e fazendo cair no vazio suas palavras despotencializadas. Na verdade a impenetrabilidade destes rostos, seu “não-saber” que contrasta com a antiga sabedoria da voz do povo é a contrapartida da eloquência – falsa – do locutor.

A esses dois registros o cineasta sob os quais o jornalista aparece na pela o cineasta acrescentou um ainda um terceiro, por meio de um personagem de curta aparição, mas extremamente afinado com a fauna rodrigueana: ao chegar à redação Caveirinha passa, em meio à agitação e gritaria de seus colegas, por um imperturbável jornalista de óculos que escreve uma sofisticada matéria de crítica às instituições. Numa atitude e num vocabulário frontalmente opostos ao linguajar tosco e ao comportamento vulgar do resto da redação, esse novo personagem recupera, em tom irônico, a crítica que Nelson Rodrigues fazia dos rumos que vinha tomando a imprensa de seu tempo: a frieza de seu tom evoca a modernização dos jornais que estava trazendo, para dentro das redações, novos profissionais, não mais formados na paixão e no calor do dia-a-dia, mas de extração mais intelectual; seu vocabulário pedante atesta o expurgo do mau-gosto, do tom kitsch que impregnava o jornalismo popular de então; ao mesmo tempo, sua reprovação às instituições políticas “inadequadas” e a menção aos “destinos da pátria” atualizam a crítica ferrenha que o dramaturgo fazia à esquerdização das redações, associada ao nacionalismo[5]. Sancionando o tom de galhofa, uma bola de papel, chutada por Caveirinha, vem aterrissar no colo do repórter sofisticado, encerrando a cena.

O beijo no asfalto

A peça de 1961, filmada em l965 por Flávio Tambellini e em 1980 por Bruno Barreto, conta a história do jornalista que inventa uma relação homossexual entre o jovem Arandir e o moribundo atropelado, que ele beijou na boca por piedade. Exemplo acabado do jornalista como o desencadeador da ação, é nesse projeto de cunho mais acentuadamente oracular, em que o próprio destino dos personagens é decidido pelo perverso repórter, que o “contágio ficcional” de que falara Maria Lúcia C. da Rocha Ribeiro é, por sua vez, igualmente levado ao seu grau mais elevado: além do personagem da peça ter o mesmo nome do repórter policial real Amado Ribeiro, o jornal atende pelo mesmo nome – Última Hora – do veículo onde o dramaturgo trabalhou tantos anos. Também a capacidade do jornalista de ativar os mitos ancestrais com os quais Nelson se defrontou é muito mais acentuada nesta peça: é a sua entrada na vida dos personagens que desata, ou revela, as relações doentias – ou primevas – que o dramaturgo cultivou nas suas criaturas: o amor homossexual do sogro pelo genro Arandir; a paixão da cunhada pelo marido da irmã.

O filme de Bruno Barreto (o filme de Tambellini não está disponível em vídeo) partilha com a versão de Nelson Pereira dos Santos a exploração do carisma de um ator. Assim como este cineasta já fizera valer a presença de Jece Valadão para interpretar, com grande propriedade, o bicheiro Boca de Ouro – ator que se consagraria, no mesmo ano do filme, com a obra Os cafajestes de Rui Guerra – Bruno Barreto buscou seu parceiro Daniel Filho para compor o personagem não menos cafajeste do jornalista. O aproveitamento desta reputação criada vinte anos antes pode ser considerado sob a mesma ótica de que falava Maria Lúcia da Rocha Ribeiro, como fruto de uma espécie de “contágio ficcional”– embora, aqui, de ficção para ficção que certamente agradaria ao dramaturgo: o “cafajeste” Daniel Filho empresta sua “reputação cinematográfica” à composição de mais esse canalha rodrigueano – associado ainda, na história, a um parceiro contumaz do jornalista, e tão venal quanto ele: o delegado de polícia.

Num filme que se limita a trazer a ação da peça para o presente, o diretor acrescenta, à presença do trabalho do repórter, o registro televisivo, que não constava do original.O filme de Barreto apresenta, de fato, um flash da cobertura televisiva das repercussões do acontecimento: ocasião para o diretor mostrar a televisão como um veículo moderno, objetivo, em nítido contraste com a atuação do repórter Amado Ribeiro, que representaria um outro modo de fazer jornalismo[5]. Enquanto este último manipula os participantes da história e destrói suas vidas, a tv de Barreto vai às ruas ouvir a opinião pública, os especialistas, mostrando neutralidade, rigor e eficiência. Por transmitir ao vivo, dialogar diretamente com seu público, e poder captar os fatos simultaneamente ao seu acontecimento, a televisão pode ser vista aqui como contraponto – embora com sinal trocado – do rádio que Nelson colocara na sua versão de Boca de Ouro, cuja popularidade, de resto, ela hoje reproduz. Assim, escapando dos chavões do locutor e do kitsch radiofônico da primeira história – a televisão de Barreto (de quem o cinema brasileiro vai se aproximar cada vez mais a partir desta década) opera com contenção e método, contrapondo-se ao universo jornalístico de paixões e golpes no qual Nelson Rodrigues inscrevia seus personagens.

Há ainda um outro paralelo entre as duas cenas de rua em Boca e Beijo: se na primeira delas o repórter fala ao vivo, mas indiferente aos populares que o rodeiam – afinal não é a eles que se dirige, seu objetivo é se apropriar do mito e transpô-lo para a sua linguagem – na segunda os passantes são chamados a opinar sobre os fatos, reiterando, por sua vez, um outro mito, cada vez mais prestigiado nos dias de hoje, e que o cinema de Barreto também sanciona – o da transparência da opinião pública.

Com certeza Nelson Rodrigues não olharia com esses mesmos olhos a televisão – nem encontraria, de resto, encanto algum nas assépticas redações “técnicas” e burocratizadas dos jornais de hoje. Na verdade, a “neutralidade” do jornalismo televisivo elogiada por Barreto não passa do contraponto “bem-pensante” da sanha com que os jornalistas dos atuais programas ditos populares abusam de suas “vítimas”, do tratamento retumbante que é dado ao fait divers – este fenômeno que tanto seduzia o dramaturgo – esgotando, literalmente, os últimos resquícios do seu potencial dramático. Nesse contexto de instrumentalização dos sentimentos alheios e de otimização do mal, o Diabo Fonseca seria, certamente, uma excrescência. E o dramaturgo, coitado, morreria de tédio.


Publicado no livro “Nelson Rodrigues e o cinema”.
Org: Eugênio Puppo e Ismail Xavier por ocasião da mostra do mesmo nome no Centro Cultural Banco do Brasil. 2004.


[1] Almeida Prado, D. “Nelson Rodrigues” in Nelson Rodrigues Teatro Completo. Org. e prefácio de Sábato Magaldi. Ed. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1993.

[2] Ribeiro, Ma. Lúcia Campanha da Rocha. “Ambigüidade exemplar” in Nelson Rodrigues –Teatro Completo. Op.cit.

[3] Décio Almeida Prado menciona a importância do papel desempenhado, nas peças de NR, pelo falatório dos vizinhos e pelas flutuações da opinião pública. Segundo o crítico, o mito e o imaginário permeiam a vida real, e a superstição suburbana substitui, para todos os efeitos, o destino trágico grego.  “Nelson Rodrigues” in Nelson Rodrigues – TeatroCompleto. Op.cit. Ismail Xavier menciona, a respeito do teatro de Nelson Rodrigues, o “tom rebaixado” da comunicação oracular.  Xavier, I. O olhar e a cena – Melodrama,Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. Cosac &Naify. São Paulo, 2003

[4] Uma ambiguidade semelhante parece estar na origem do enorme fascínio que o teatro de Nelson – e a sua própria “persona” – exercem sobre muitos jornalistas.

[5] Ismail Xavier comenta nesse sentido a introdução da televisão na trama de Nelson Rodrigues. Op.cit


BOCA de Ouro [cartaz]. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67170/boca-de-ouro-cartaz. Acesso em: 19 de Abr. 2021. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7

Back To Top