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As joias nômades de Maryvonne Berringer

“Nenhum objeto deixa indiferente a necessidade estética”

Gilbert Simondon

Costuma-se considerar as joias como coisas preciosas, em virtude da nobreza que se atribui ao material da sua fabricação. Desprovidas das matérias que justificariam esse atributo, as joias criadas por Maryvonne Berringer são também preciosas, mas, de uma outra maneira – elas fazem parte de uma outra sorte de “linhagem”. A artista prefere, com efeito, a prata e o alumínio ao ouro; não lapida suas pedras – escolhidas, de resto, fora dos cânones da joalheira –, e recorre ainda a uma enorme variedade de materiais, às vezes inusitados: além de sementes, conchas, fósseis, madeira, usa objets trouvés (botões, fones de ouvido…), fragmentos de objetos (parte de um cachimbo, tampa de vidro de perfume…) e até mesmo de outras joias (tanto modernas quanto étnicas).

Se não são os materiais que conferem nobreza às joias de Maryvonne, o que as torna preciosas é, antes, a qualidade estética do trabalho nelas empenhado – e, por trabalho, não me refiro à “fatura” da artista, aliás, de grande refinamento – mas, antes, ao privilégio por ela concedido à relação material/força em detrimento da dualidade material/forma, consagrada pelo design. Ao tomar o partido do material, descartando a concepção de uma forma prévia que se imporia à matéria, Maryvonne manifesta, com efeito, outra sorte de “filiação”: suas joias não dão prioridade ao projeto constitutivo do design (o qual dá mostras, aliás, de conhecer muito bem), mas levam em conta a sua própria capacidade de detectar e extrair as potencialidades contidas no material – as suas linhas de força – a partir das quais a forma passará a ser desenvolvida e “ganhará corpo”.

Fruto da intuição, a joia advirá como um desdobramento do material, o resultado do encontro feliz entre a sua singularidade e a capacidade de expressão da artista. Também a sensibilidade de Maryvonne aos acontecimentos menores, sua disponibilidade aos apelos do entorno e a rara liberdade do seu olhar, constituem um leque de qualidades que não apenas dão lugar a ressonâncias e enlaces surpreendentes, mas instituem um estado permanente de criação. O contentamento que o trabalho propicia a Maryvonne vem do fato de que é, ao criar, que ela logra atualizar tanto as suas qualidades artísticas, quanto aquilo que o material contém apenas virtualmente – donde a vitalidade e a convicção que emanam de cada uma de suas peças.

Essa preponderância da materialidade se deve à mesma delicadeza em relação ao material que o filosofo francês Gilbert Simondon reconhecia no uso do concreto por Le Corbusier – sem reboco, deixando à vista os traços das tábuas no cimento armado. Encarnando o pensamento do filósofo da tecno-estética, a artista não apenas passa ao largo das normas da joalheira tradicional quanto à escolha de seus materiais, mas, como fez Corbusier, privilegia o “modo de ser” que lhes é próprio (por exemplo: só usa pedras lapidadas quanto estas já chegam assim às suas mãos), guardando por eles o mesmo delicado respeito do arquiteto. É esse apreço que acaba engendrando uma íntima e longa convivência da artista com seus materiais: ela não só pode guardá-los por um bom tempo, antes de descobrir a joia na qual eles se transformarão, mas com eles continua convivendo ao conservar consigo quase todas as suas peças (não vende suas joias, apenas as oferece a pessoas queridas), e ao usá-las quotidianamente. Tal fidelidade se deve ao fato de Maryvonne ser atraída pelas potencialidades virtuais do material, de considerá-lo como portador de singularidades – de traços pertinentes, dirá o filosofo – cuja força, ao acionar sua própria sensibilidade, será determinante para a constituição da futura joia.

Foi Gilbert Simondon quem observou que o artesão “segue” a madeira ao aplainar, ele segue as fibras da madeira: são as ondulações, as torções variáveis dessas fibras que guiam e ritmam suas operações, das quais resultam afetos variáveis, como o prazer do movimento, a alegria da sua consecução.

Para o filósofo, o artesão se dirige menos a uma forma que imporia suas propriedades à matéria, do que a “traços materiais de expressão” que são próprios dela e que são “afetos”: os veios ou as ondulações da madeira, mas também a porosidade da pedra, sua opacidade ou transparência…, constituem apelos à percepção e à sensibilidade e desencadeiam o prazer de tocar, de tratar, que conduzem a concretização do artefato. Também o pintor sente a viscosidade da tinta que estende sobre a tela – nota ele – e a sensibilidade tátil e vibratória do material entra em jogo, igualmente, no seu trabalho.

Maryvonne leva em conta, como aponta o filósofo, os traços materiais de expressão do material, manifestando os afetos próprios dele quando, por exemplo, segue o formato das pedras: quartzo com dendrita (figura 01); ou seus veios (figura 02); ou então o ondulado da amonita fossilizada (figura 03).

figura 01 – colar prata, quartzo com dentrita
figura 02 – pendente prata, rocha sedimentar
figura 03 – pendente prata, amonita
figura 04 – pendente prata, amonita piritizada e diamante negro

Também quando realça o relevo das conchas, introduzindo texturas no suporte de metal que as “acolhe” (figura 04); quando aconchega a pérola, redonda, numa acolhedora torção circular da prata (figura 05), ou mesmo quando explora a maleabilidade do metal, sua flexibilidade ou dureza, ela segue o material, ou seja, o fluxo da matéria, sua fluência. Enquanto portadora de singularidades e de traços de expressão, a materialidade (natural ou artificial) é a matéria em movimento, em fluxo, em variação – e por isto que são infinitas as possibilidades que se abrem para o trabalho da artista.

figura 05 – anel prata e ouro, pérola cultivada do Tahiti
figura 06 – anel prata, operculum

Gemas, pedras, minerais

Nas gemas e pedras a artista levará em conta características (que o filósofo chama de “forma da expressão”) como a rugosidade, a aspereza, o brilho, o formato, a cor, o liso, a transparência ou a opacidade, a dureza, a porosidade, a presença de veios ou de relevos – determinantes, por sua vez, para o desenho da joia. Tomemos o exemplo das duas peças com operculum, uma gema orgânica, que protege a lesma de um caramujo: a artista se prevalece do veio circular de cor cinzenta que percorre sua superfície branca e leitosa, para retomar esse movimento no desenho de anéis, pendentes e brincos (figura 06; figura 07).

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figura 07 – brincos prata, operculum
figura 02 – pendente prata, rocha sedimentar
figura 01 – colar prata, quartzo com dentrita
figura 08 – pendente prata, hematita com rutilo

O pendente da figura 02, além de retomar o formato da rocha, ecoa os seus veios nos fios de metal que a prendem ao suporte; igualmente no colar com dois quartzos com dendrita de dimensões e formatos diferentes, o formato e os veios, são ecoados pelo desenho (figura 01). Uma pedra multifacetada como a hematita com rutilo será encaixada num pendente de prata de desenho geométrico, cujo traçado como que projeta, num mesmo plano, esse formato tridimensional (figura 08); no pendente com uma amonita em duas partes (figura 09), as formas arredondadas são como que encaixadas uma na outra, sendo esse acoplamento repercutido pelo desenho circular da joia; com outro fóssil, o trilobita (figura 10), não é apenas o desenho do metal que segue o da pedra, mas até as nervuras nela produzidas antes de chegar às mãos da artista serão reconhecidas como parte dela, e terão prosseguimento no metal, como que estendendo a força do material.

Às vezes é o fosco da pedra negra (um seixo de rio) que é destacado por um brilhante redondo, mínimo, encastoado na sua superfície. Pode acontecer também que a pedra já contenha “informação” suficiente; então o desenho se limitará a acompanhar sua forma: é o caso da seraphinita verde de veios irisados do pendente da figura 11, cujo desenho ovalado terá apenas dois cortes, como que abrindo esse fundo para que o irisado possa “respirar”. Outras vezes, o “liso” da pedra merecerá um suporte de recorte simples, de forma que seu brilho prevaleça; como no pendente de ágata reluzente sobre prata (figura 12). Enquanto uma pedra já lapidada terá sua transparência valorizada de modo original quando é deixada livre, sem um fundo, fazendo a junção entre duas peças de metal: é assim com o pendente ovalado de prata, dividido em duas partes unidas por três citrinos e quatro fios de ouro (figura 13).

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figura 09 – pendente prata, amonita serrada em duas partes
figura 10 – pendente prata, trilobita
figura 11 – pendente prata, seraphinita
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figura 12 – pendente prata, ágata, seixo de rio
figura 13 – pendente prata e ouro 18K, citrinos

Note-se, aliás, que o uso feito por Mayvonne de gemas como a ametista, o quartzo incolor, as pérolas cultivadas e até o brilhante é também peculiar. As pérolas serão muitas vezes alojadas em suportes arredondados e acolhedores de prata (figura 05), e como que devolvidas às conchas; ou, ao contrário, aparecerão soltas nos “vãos” das peças recortadas em forma de folhas (figura 14). O tão prestigiado brilhante, sempre mínimo, também poderá “pontuar” certas peças, como o bracelete de prata com uma dobra interessantíssima (figura 15).

figura 05 – anel prata e ouro, pérola cultivada do Tahiti
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figura 14 – pendente prata, pérolas cultivadas e tratadas
figura 15 – bracelete prata, brilhantes

Às vezes a interferência será mínima, quando a peça já constitui, em si mesma, um objeto pleno – como se já trouxesse consigo o seu desenho. Uma pérola de forma estranha foi respeitada na sua inteireza e aguardou um bom tempo até que Maryvonne “encontrasse” o desenho que a ressaltasse (figura 16). O caso das gemas brancas, transparentes e diáfanas também é exemplar desse cuidado em não interferir, ou em reduzir ao mínimo a intervenção: enquanto as duas drusas de quartzo na calcedônia de um pendente são serradas em forma retangular, sua base em metal é reduzida ao mínimo para que a transparência e os pequenos pontos brilhantes se evidenciem (pendente da figura 17 e anel da figura 18). Pode até acontecer que essas pedras repousem sobre uma peça de prata, porém recortada de forma arejada para que a transparência não se perca (figura 19); às vezes é outra pedra, também transparente, mas colorida e brilhante, que vem realçar ainda mais esse aspecto diáfano, sem que a intervenção pese: é o caso do quartzo bruto de forma arredondada que tem as reentrâncias de suas bordas aproveitadas para atar, com fios de prata, uma ametista lapidada ao seu centro (figura 20).

figura 16 – pendente alumínio, pérola
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figura 17 – pendente prata, druza de calcedônia e quartzo
figura 18 – anel prata, druza de calcedônia e quartzo
figura 19 – pendente prata, quartzo ametistado
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figura 20 – pendente prata, ametista, “flor” de cristais de quartzo

O mesmo gesto, seguir o material, será repetido quando se trata de sementes, caroços, conchas, fósseis…, ora sozinhos e inteiros, ora cortados e/ou acompanhados de outros materiais. O pendente da figura 21 é um belo exemplo de respeito ao material: um coral branco de veios salientes foi mantido na sua inteireza, o fio de metal que o prende ao pescoço apenas contornando os veios e “ressoando” essas saliências; também o desenho arredondado do pendente com amonita acompanha seu formato e retoma seus relevos por meio de cortes bem abertos na prata (figura 03). Quando os materiais são cortados ou laminados, a intervenção tem também por objetivo trazer à luz suas texturas, cores, relevos, veios, revelando potencialidades que o olhar corriqueiro não descobriria na peça inteira. Por exemplo, um anel feito com caroço de abacate cortado ao meio (figura 22) e o originalíssimo colar com duas sementes negras, onde a intervenção mínima – uma pequena placa de prata incrustada na semente – destaca a uniformidade e o liso do material (figura 23).

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figura 21 – pendente prata, coral branco
figura 03 – pendente prata, amonita
figura 22 – anel prata, cobre, parte de semente
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figura 23 – colar prata, sementes

Também quando usa objetos fabricados pelo homem, ou melhor, seus fragmentos, Maryvonne pode neles descobrir traços antes insuspeitados; ela acionará, então, todo um elenco de qualidades do objeto, num desvio de função que trará à luz novas linhas de força, escondidas pelo uso. Um bom exemplo é o emprego de botões esféricos facetados em dois anéis, tirando proveito dessas características repercutidas e realçadas no “folheado” de metal que a sustenta (figura 24 e figura 25); ou da relação entre sua parte lisa, facetada e brilhante e sua parte opaca, quando a tampa de um perfume se “solta” ao ser pendurada num pendente de metal torcido em formas aéreas (figura 26). Também as colherinhas de café, deslocando duplamente a “memória” de sua função, não apenas serão transformadas em anel e colar, mas recuperam de outro modo o gesto de “acolher”, próprio do objeto, como se fossem “conchas” que aconchegam pérolas no seu bojo (figura 27 e figura 28).

figura 24 – anel prata, quartzo
figura 25 – anel prata, quartzo
figura 26 – pendente prata, tampa de perfume
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figura 27 – anel prata, imitação de pérola
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figura 28 – colar prata, imitação de pérola

Um objeto pode até mesmo ser preservado em sua inteireza, acrescido apenas de algum tipo de encaixe que assegure o seu porte: é o caso do grande pássaro artesanal encaixado num suporte quase imperceptível, para se tornar um bracelete (figura 29). Esse procedimento se aplica, em geral, a objetos já portadores de desenho e de sentido fortes, nos quais a intervenção mínima, porém decisiva, ao “deslocar” o seu uso, também desloca a percepção que deles temos. Dois objetos inteiros também podem entrar em uma espécie de “descombinação”: é o caso do pendente composto por uma grande semente escura de onde pendem vários fones de ouvido verdes, na qual se encastoa uma pequena peça redonda de metal, como que mediando a passagem do natural ao tecnológico (figura 30). Dentre as peças mais surpreendentes figura o anel feito com fragmentos de um cachimbo, em que a parte mais áspera e queimada pelo uso contrasta com o claro da madeira (figura 31).

figura 29 – bracelete prata, madeira
figura 30 – colar cabo elétrico e prata, vagem com sementes
figura 31 – anel prata, parte de um cachimbo

Certas formas já dadas podem ser um motivo para o desenho de Maryvonne. Mas ela estará sempre em busca da forma dominante que a elas subjaz, tornando-as consistentes: assim, numa flor de seu jardim ela viu não propriamente uma flor, mas o turbilhão de formas em movimento de um beija-flor, turbilhão captado para o desenho geométrico de um pendente com hidenitas e citrinos (figura 32).

figura 32 – pendente prata, hidenita, citrino

O viés moderno

É possível reconhecer um viés moderno nas joias de Maryvonne, que pode se explicitar de duas maneiras: quando “retoma” sua pintura – ela iniciou sua carreira de pintora nos anos 50; ou quando se aproxima ou mesmo se “apropria” do étnico. No primeiro caso, o desenho já está “dado”, e será como que a matéria para o desenvolvimento da joia: assim, os coloridos círculos tão presentes na sua figuração geométrica – as séries Vasos de Flores e Bonecas – continuarão a atuar em suas peças que, desta “matéria”, parecem retomar mais propriamente a dinâmica do movimento circular que faz emergir a força das cores – isto é, sua forma de expressão. As telas da primeira série terão seus vibrantes círculos repercutidos em diferentes joias, em composições com pedras e cores variadas: o pendente com fatias de esponja do mar vermelhas (figura 33); ressonância que se repetirá no colar de quartzo amarelo irradiado (figura 34). Ainda dessa primeira série de telas, encontraremos ecos em peças de metal, como o pendente de círculos de alumínio encaixados uns nos outros (figura 35).

figura 33 – pendente prata, esponja do mar
figura 34 – pendente prata, quartzo amarelo tratado
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figura 35 – pendente alumínio

Numa peça rica em referências, Maryvonne se permite aliar sua própria pintura à de Niobe Xandó, retomando a máscara O hippie (1971), da artista, no seu pendente de prata (figura 36). Ainda da série Vasos de Flores, seus pequenos círculos que lembram sementes a deslizar entre as folhas repercutem nos pendentes com pérolas cultivadas que assumem, muitas vezes, também a figura das folhas (figura 37; figura 14); enquanto a dinâmica entre formas arredondadas e recortes geométricos da série Bonecas é retomada em outras peças – a mais curiosa é um objet trouvé.

figura 36 – pendente prata brilhante
figura 37 – pendente prata e ouro 18K, pérola cultivada composta mabe, pérola cultivada composta mabe tratada
figura 14 – pendente prata, pérolas cultivadas e tratadas

Também o geométrico de sua pintura é retomado em várias peças, como o pendente de ébano com tubos ocos de metal (figura 38). Ou pode ser ainda desenvolvido em peças apenas de metal: a série de pendentes de placas de alumínio, abertos por grandes cortes circulares, cujos ajustes dos ângulos, às vezes desencontrados, lembram pequenas esculturas vazadas (figura 39). Em algumas peças será a maleabilidade da prata, sua capacidade em aceitar torções que aproximará as joias dos móbiles consagrados por Calder: é assim que ficam suspensos no ar, balançando, os fios enrolados de metal dos pendentes (figura 40) ou dos brincos (figura 41). Também na prata, o brinco que une os ângulos agudos ao arredondado (figura 42), e os braceletes cujos recortes agora se adequam ao objeto circular (figura 43; figura 44).

figura 38 – pendente prata, ébano
figura 39 – pendente alumínio
figura 40 – pendente prata, brilhante
figura 41 – brincos prata
figura 42 – brincos prata
figura 43 – bracelete prata
figura 44 – bracelete prata

Outro aspecto do viés moderno do trabalho de Maryvonne pode ser apontado quando a artista se volta para o étnico – tanto para a arte indígena brasileira quanto para as culturas africanas (que a interessaram desde que começou a pintar cenas populares em Salvador, Bahia, no início de sua carreira). Mais uma vez, porém, a artista não se limitará à uma evocação do desenho étnico, mas colocará em evidência a sua dimensão material – quando dela não se apropriará, literalmente. É assim quando usa diretamente peças étnicas, operando nelas apenas uma mínima intervenção: o caso da gargantilha feita com uma peça indígena de coquinhos usada nas pernas ou nos braços para a dança que, deslocada de seu lugar, sobe ao pescoço, é enrolada num fio de metal que a torna mais rija, enquanto a artista introduz bem no seu centro uma pequena peça de metal enrolado ou, no sentido inverso, quando “interfere” numa peça sua, nela incorporando um artefato étnico: é o caso da pulseira de prata de recortes geométricos de onde pende um brinco indígena de penas (figura 45). Tanto num como no outro exemplo, tratar-se-á de uma reinterpretação do entendimento que o moderno teve do étnico, reinterpretação que vai além da questão da forma para incorporar a própria presença física do artefato indígena.

figura 45 – bracelete alumínio, pena de pássaro

Ainda dentro dessa apropriação ou transformação do artefato étnico, pode ser que não sejam utilizadas peças inteiras, e que nem haja nelas intervenção da artista; então será o seu “traço” material que será como que incorporado ao desenho de uma peça: é o caso do colar de prata com calcedônias pretas – que são réplicas de flechas antigas (figura 46) – cujo forte corte geométrico segue ao mesmo tempo a pedra e a flecha, mas tem essa opção ainda acentuada por uma tira de fibra vegetal enrolada apenas num trecho da parte que envolve o pescoço, imprimindo na peça a materialidade do étnico.

figura 46 – colar prata, cipó, réplicas de pontas de flecha

Esse tipo de aproveitamento do recurso do artefato étnico a matérias naturais – de origem vegetal ou animal –, ou mesmo a retomada de suas formas parece sugerir à Maryvonne uma aliança entre os mundos mineral, animal e vegetal. Por exemplo, a aliança entre o vegetal e o mineral como que evoca o mundo animal nos pendentes “em folha”: como a peça com um jaspe vermelho circundado pelo metal em recortes acentuados que lembra um inseto com suas asas abertas (figura 47). O étnico pode também se fazer presente em peças unicamente de metal: por exemplo, o pendente em forma de peixe com recortes fortes que lembram a pintura corporal indígena, com um pequeno coral tingido de vermelho no lugar de seu olho (figura 48). Sem constituir propriamente uma inspiração – como foi para Picasso e seus companheiros – a forte presença do étnico no trabalho de Maryvonne pode ser interpretada como resultado de uma “afinidade de sensibilidades”, de um parentesco muito próximo entre manifestações de culturas ditas “primitivas” e o olhar livre, rente ao mundo da artista.

figura 47 – pendente prata, jaspe
figura 48 – pendente prata, coral tingido

Outro componente do método de trabalho de Maryvonne é o acaso, ou melhor, o modo como a artista acolhe as forças que ele pode manifestar: a cúpula de um abajur cai, se parte, e na composição de seus restos no chão a artista “vê”, já pronto, o desenho de um colar – indo agora, na direção inversa daquela que vai do material ao desenho, em busca do material que lhe será apropriado (figura 49). Nem por isso o trabalho cairá na dualidade forma/conteúdo: pois em vez de um desenho como etapa anterior à confecção da obra, agora é a própria obra que se apresenta como que “já desenhada” ao olhar alerta da artista. Também um relógio Omega fora de uso tem sua pulseira de ouro transformada em requintada pulseira, numa composição com prata e citrino (figura 50).

figura 49 – gargantilha prata, ametista
figura 50 – pulseira ouro, prata, citrino

Seguir o fluxo

Ao levar em conta em seu trabalho a opacidade, os veios ou a transparência da pedra, o “recolhimento” dos caracóis, os contrastes de cores e texturas de um cachimbo Maryvonne reata com o gesto do artesão que aplaina a madeira segundo a ondulação de suas fibras. Assim também, do mesmo modo que este se desloca para buscar a madeira que deseja onde ela se encontre, o trabalho de Maryvonne pressupõe não propriamente um trajeto, mas uma deambulação: passeando na praia ela acha conchas, no jardim encontra sementes; ou então é o seu olhar que deambula por entre objetos familiares, para surpreendê-los num momento peculiar.

A arte, diz Gilbert Simondon, não é apenas objeto de contemplação, mas de certa forma de ação. Ao seguirem o fluxo da matéria – seja por meio de gestos, seja da busca ou descoberta inesperada – tanto o artesão quanto o artista são a intuição em ação.

Seguir o fluxo: o filósofo Gilles Deleuze escreve que o fluxo da matéria é essencialmente metálico ou metalúrgico. Com isso ele quer dizer que tanto o metal quanto a metalurgia trazem à luz uma vida própria da matéria, um estado vital da matéria enquanto tal; estado que sem dúvida existe em todo lugar, mas que é em geral escondido ou recoberto pelo modelo forma/matéria, tornando-o irreconhecível ou dissociado. O metal é coextensivo a toda matéria, diz ele, e toda matéria é coextensiva à metalurgia: até a água, o mato, o bosque e os animais são povoados de sais e de elementos minerais. Nem tudo é metal, mas há metal em toda parte. “o metal é o condutor de toda matéria”, escreve Deleuze – ou seja, é ele que “dá liga” a todos os materiais envolvidos na fabricação de artefatos e de joias.

Quando Maryvonne submete o desenho do metal à transparência das pedras, às nervuras das conchas, ao enrolar dos caracóis; quando retoma nele a dinâmica de suas telas, ou quando nele interfere por meio de texturas, arranhões, perfurações, ela não apenas retoma ou faz contraponto com esses materiais, mas suscita as forças que o metal resguarda: ao seguir o fluxo da matéria, o metal tem também suas próprias potencialidades como que despertadas. Podemos dizer, assim, que o trabalho de Maryvonne reata com essa propriedade originária do metal, com a sua capacidade de ser coextensivo a qualquer matéria, e de trazer à luz a própria vida da matéria.

Nômades, armas, joias e afetos

Não sabemos mais muito bem o que são as joias, escreveu também Gilles Deleuze, de tanto que elas já sofreram modificações secundárias. Em todo caso, elas tiveram uma relação primeira com as armas, elas são “os afetos que correspondem às armas”, escreve ele.

As joias têm a ver, segundo o filósofo, com a vida dos nômades e com seu permanente movimento. As joias dos nômades não passam por uma relação forma-matéria, mas pela conexão motivo-suporte – sendo o suporte (o manto, a espada…) tão móvel quanto o motivo. Deleuze conta que a ourivesaria foi a arte “bárbara”, ou seja, a arte nômade por excelência: presilhas, placas de ouro e prata são fáceis de transportar e pertencem ao objeto (ao suporte) na medida em que se trata de um objeto que se move. Elas são como vetores, ou traços de expressão de pura velocidade, isto é, destinam-se a serem vistas em movimento: elas pertencem ao arreio do cavalo, à bainha da espada, à vestimenta do guerreiro, ao punho das armas, e podem decorar até mesmo aquilo que só serve uma vez – a ponta da flecha. Para o filósofo, o ouro e a prata assumirão muitas funções ao longo do tempo, mas não podem ser compreendidos sem esse aporte nômade por meio do qual não são as matérias, mas os seus traços de expressão, que se coadunam com as armas.

O trabalho de Maryvonne tem uma filiação direta com essa arte nômade, na qual conta o que o material “diz” – os seus traços de expressão – e na qual a conexão dinâmica suporte/ornamento substitui a dialética matéria/forma. Sua arte “acolhe” aquilo que o material sugere à intuição e à sensibilidade, e “acha” os gestos e as ações específicas que ele “exige”. É isso que torna suas peças únicas, e praticamente sem limites a sua margem de criação.

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