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Metamorfose do corpo

Tela/Pele

As duas superfícies foram redimensionadas pelo surgimento das imagens técnicas do cinema e do vídeo, e a dinâmica entre elas explicita de maneira privilegiada as tensões entre corpo e tecnologia no mundo contemporâneo

Toda representação da pele supõe um percurso entre natureza e cultura com configurações próprias. Se como limite do corpo a pele sanciona a sua integridade, como lugar de desfiguração e metamorfose ela lhe subtrai tal inteireza e devolve-o ao informe. Como invólucro, a pele explicita uma dinâmica entre superfície e profundidade ao aceitar e acompanhar, ao mesmo tempo, relevos e depressões. Limite e transformação, superfície e profundidade são pólos opostos no interior dos quais a pele pode ser representada. Desde que a realidade virtual tornou-se uma dimensão da experiência humana, os temas da perda do espaço, do esmaecimento da percepção, da desmaterialização dos corpos e do eclipse da realidade emergiram como resultado de uma nova espécie de migração para a tela. Esse amortecimento físico em favor da atividade visual e mental, essa fratura do corpo entre visível e sensível são uma atualização, em novos parâmetros, do antigo confronto homem/tecnologia. Tela/Pele. A dinâmica entre essas duas superfícies foi redimensionada pelo surgimento das imagens técnicas. Por isso talvez ela represente um modo privilegiado de explicitar as tensões entre corpo e tecnologia no mundo contemporâneo. Como superfície de inscrição de imagens, a tela do cinema, do vídeo e do computador pode tomar a pele como seu objeto. Mas, além dessa manifestação, ela tornou-se capaz de incorporar algumas de suas qualidades ou funções, como a textura e o tato, quando não se fez literalmente pele, como o cristal líquido do computador.

A tela do cinema

A “fidelidade” da reprodução cinematográfica fez da tela um espaço de eleição para a imagem da pele, e do nu o lugar privilegiado da sua manifestação. Grão da pele, grão da imagem – essa dupla porosidade propiciou uma aderência entre tela e pele e deu lugar a uma espécie de “exercício epidérmico” que captou diferentes texturas, do aveludado ao áspero, expandindo e intensificando a percepção no cinema.

O prestígio da pele no cinema é tributário da ampliação da imagem. Foi o que levou Jean Epstein a evocar um “teatro da pele”, geoanatomia de “pródromos superficiais” e “tremores sísmicos” sob a epiderme, num elogio do seu poder dramático. Paulo Emílio Salles Gomes destacou o poder da pele de se apropriar de toda a superfície da tela em “Hiroshima Meu Amor”, de Alain Resnais, quando a ampliação dos corpos dos amantes desfaz suas configurações e só mostra a pele. Foi, aliás, por meio desta que ele articulou a oposição central do filme – o par amor/horror-, representada pela dinâmica entre a pele lisa dos amantes e as peles corrompidas pelas irradiações da bomba 1.

1 Salles Gomes, P.E. “A Pele e a Paz”, in “Crítica de Cinema no Suplemento Literário”, vol. 2. Ed. Paz e Terra/Embrafilme, 1981, págs. 203 a 206.

O preto-e-branco e a cor captam diferentemente as potências da pele. Enquanto alguns viram uma mera superfície branca ou uma homogeneidade leitosa no P&B, outros louvaram o erotismo da brancura que revestiu os nus de uma “carne perfeita” 2.

2 Amengual, B. “Noir et Blanc”, “Une Enciclopédie du Nu au Cinéma”, Bergala, A. Déniel, J. e Leboutte (orgs). Editions Yellow Now/Studio 43-MJC, Neuve Dunkerque, 1994.

Por revelar os mínimos acidentes da pele, a cor pode representar a morte do erotismo, mas Paulo Emílio prefere atribuir a ela uma maior aproximação do cinema com a epiderme. Mas para o crítico a consciência lúcida da pele surge no jovem cinema francês com “o realismo da epiderme e dos gestos” de Vadim; nesse sentido, também poderíamos evocar a lingerie que apenas deixa entrever a pele em Truffaut ou mesmo o nudismo frio, sem pornografia ou sedução, de Godard nesse período.

Em oposição à unidade da pele, foi David Cronenberg quem submeteu o corpo a uma transformação, tirando do homem qualquer certeza quanto à integridade de seu corpo ou quanto ao seu devir: em “A Mosca” a pele do homem vai se cobrindo de pelos para anunciar a transformação, enquanto em “Videodrome” ela se abre para a retirada do corpo de um personagem. Em “O Livro de Cabeceira”, Peter Greenaway recorre à pele para discutir um outro tipo de ruptura, entre escrita e corpo, na era do computador. A repetição das inscrições no corpo, na história de uma mulher em busca do homem com a pele ideal para escrever seu livro, ressalta a materialidade ou aspecto corporal da escritura do texto 3.

3 Ver Schuler, E. e Lehmann, T.H. “Campo e Contracampo – Corpo e Cinema pela Boca Aberta de Peter Greenaway”, in “Sexta Feira -Antropologia e Humanidades”, vol. 4. Editora Hedra, São Paulo, 1999.

Além da ampliação e da intensificação da percepção, o cinema efetuou também a sua transposição, ao incorporar a tatilidade às suas imagens. Com certas objetivas ele criou uma impressão de “relevo”, enquanto com a montagem obteve um espaço tátil ao articular imagens por meio do toque ou dos movimentos da mão. A conquista de um espaço puramente ótico e tátil intervém no pós-guerra, quando se rompe o modelo clássico de representação com o surgimento da imagem-tempo. Criador dessa figura, Gilles Deleuze cita o cinema de Robert Bresson como exemplo de valorização cinematográfica da mão e da tatilidade, ao usá-las para conectar fragmentos desconexos do espaço visual. Em cenas de “Pickpocket”, o tato e as mãos dos três cúmplices organizam o espaço fílmico, duplicando a função preensiva (objeto) com uma função conectiva (do espaço) e criando “um toque próprio do olhar”, quando o olho acrescenta à função ótica uma função háptica 4.

4 Deleuze, G. “L’Image-Temps”, Les Editions de Minuit, Paris, 1985, págs. 22 e ss (O livro foi traduzido no Brasil pela Ed. Brasiliense).

A tela do vídeo

A imperfeição da reprodução televisiva – ou a manifestação de sua base técnica na imagem – não faz deste um meio tão apropriado quanto o cinema para retratar a pele. Mas, se o último teve de desenvolver sua linguagem para evocar a tatilidade, na televisão o tato parece emergir da própria construção material da imagem, portanto num estágio anterior à articulação da linguagem. Foi McLuhan quem descreveu o exercício tátil do olho para reunir os pontos da imagem televisiva, como se um “dedo perscrutador” apalpasse a tela, fazendo incessantemente o contorno das coisas. Limitada por seus objetivos comerciais e institucionais, a televisão não explorou suas potencialidades, ficando a experimentação com os criadores da videoarte a partir dos anos 60-70. Muitos artistas da primeira fase ecoaram as teses mcluhanianas, interessando-se pelas diferenças específicas entre este “medium”, a pintura, a escultura e o seu vizinho mais próximo, a televisão. Mas, em virtude da crítica que fizeram desse meio, a tatilidade, que McLuhan associava ao consumo televisivo de massa, não foi visada. A descoberta da pele pela videoarte não se deve, pois, à exploração das particularidades dessa imagem, mas à evidência que o corpo viria a ganhar na mesma época. As teses modernistas de McLuhan deram lugar também a uma crítica ocupada com a especificidade técnica da imagem televisiva. Esse parti pris, que levou os modernistas a enfatizarem uma certa “distância” do meio em relação ao objeto, deixou-os desmunidos quando a videoarte veio a interferir diretamente no corpo. Para entender a emergência do corpo na tela do vídeo é preciso ultrapassar o limite técnico, evocando o contexto histórico-cultural que deu lugar a uma fina sintonia entre esse “medium” e as formas artísticas emergentes.

Ferramentas políticas

Os anos 60-70 mostraram grande sensibilidade política e social, intensas transformações culturais e de padrões de comportamento. Ao mesmo tempo, eles abrigaram o questionamento do objeto de arte por meio de formas como a performance, a arte conceitual, a earth-art e a body-art, que fizeram do corpo um lugar de intervenção e interrogação. Nesse contexto de evidência corporal, os artistas recorreram ao vídeo como “ferramenta política” e ao corpo como objeto para mudar as relações do artista consigo mesmos, com o objeto de arte e com o espectador, para interferir na dinâmica entre o público e o privado e redefinir o papel da arte na sociedade.

A instantaneidade e a facilidade de manuseio levaram ao uso do vídeo nessas experiências, mas o que inspirou os artistas foram as questões então em voga: a identidade, a fragmentação ou desconexão do eu, a liberação sexual, a crítica da sociedade de consumo ou do sistema midiático – cuja referência mais imediata é o corpo. Nessa vertente se situaram os trabalhos de Bruce Nauman, Lucas Samaras, Vito Acconci, Gina Pane, Chris Burden e Denis Oppenheim, por exemplo, onde o corpo pode ser meio de expressão, objeto de manipulação ou de agressão; nesse mesmo sentido trabalharam, no Brasil, Letícia Parente e Sônia Andrade.

Nessa aproximação entre vídeo e corpo, a pele foi diretamente visada pelos artistas como seu limite ou como superfície sensível. O vídeo “Stage Transfer Drawing (Return to a Past State, 1971)”, de Denis Oppenheim (Bienal de São Paulo, 1975), considera ambas as dimensões para operar uma verdadeira fusão pele/tela: o artista desenha com os dedos nas costas de seu filho, e este reproduz do mesmo modo o que capta numa tela comum.

São dois corpos em contato por meio da pele e três telas que reproduzem a forma: as costas do jovem, a tela propriamente e a tela do vídeo. Quando o pai desenha, as duas superfícies sensíveis constituem a primeira tela. O filho desenha na segunda tela, mas sua mão é guiada também pela pele, que permite a transferência da forma captada.

A transferência do desenho do pai para o filho se dá fora da visão, pelo tato, enquanto a tela do vídeo exclui esse contato, apelando só para o olhar. Essa continuidade de gestos, realçada pela consanguinidade, configura a intimidade de um contato cujo contraponto é a separação implicada na reprodução técnica pelo vídeo.

O vídeo “Marca Registrada” (1974), de Letícia Parente, é uma intervenção agressiva no corpo: um “close” da artista que borda na sola de seu pé a sigla “Made in Brazil”. Por meio dessa agressão à pele (furar), que se opõe à delicadeza do gesto feminino (bordar), o trabalho expõe as contradições do tema da identidade, quando são vencidos os limites individuais que de hábito o circunscrevem. O que é posto em evidência não é o rosto, parte “nobre” do corpo que “sedia” a identidade, mas a anônima sola dos pés -associada ainda ao fundo dos objetos em que, no mundo da mercadoria, se registra a sua origem.

Essa assimilação da origem à produção em massa torna a identidade impossível, o que é agravado quando ela é sancionada em inglês. O uso dessa língua traz também à tona a questão da identidade nacional, insistente na época (aspecto que ganha colorido se lembrarmos que Acconci mordera seu próprio corpo em “Trademark”, 1970). Tal dispositivo visa à sociedade capitalista, que assimila as pessoas e a figura do artista ao objeto de consumo – e o seu representante mais eminente na órbita do qual o país gravita. Na sua irônica transposição para o trabalho manual do gesto que identifica a mercadoria de produção industrial, o vídeo ressalta a precariedade técnica do país periférico.

Nos anos 80-90 se dá um deslocamento desse modelo de corporeidade. O avanço tecno-científico – com o nascimento da engenharia genética, a clonagem, a robótica, as próteses e a descoberta do vírus da Aids – passa a colocar em questão a integridade corporal, a embaralhar os limites biológicos e a distinção entre espécies ou entre o humano e as máquinas. Por outro lado, o desenvolvimento de novas formas artísticas (particularmente da vídeo-instalação) impõe uma minoração da tela em função da conquista do espaço -o que Margaret Morse chama de espaço “in-between” – como lugar afirmativo da experiência sensível do espectador 5. Em vez de um corpo íntegro, a arte dos anos 80-90 lida com uma construção, um híbrido entre orgânico e inorgânico, “corpo de contaminações múltiplas e funcionalidade imprevisível” 6, que não tem mais a pele como limite, mas como lugar de mutações. Os trabalhos de Orlan e Stelarc ilustram a nova corporeidade. Reconstruído incessantemente por cirurgias plásticas, o corpo “in progress” de Orlan atesta, na exasperação da carne, uma irredutibilidade do corpo, cujo contraponto, sua transformação permanente, está nas extensões e próteses que Stelarc se impõe.

5 Morse, M. “Video-Installation Art – The Body, the Image and the Space in-Between”, in “Illuminating Video – An Essential Guide to Video-Art”. Aperture/BAVC, Nova York, 1990.

6 Macrí, T. “Il Corpo Postorganico – Sconfinamento della Performance”. Costa & Nolan, Gênova/Milão, 1996.

Impacto da ciência

O fim do primado da tela e o impacto do avanço tecno-científico no corpo se refletem na vídeo-escultura “Hauten” (Peles, 1995), de Kirsten Johannsen, destinada a servir de apoio numa vídeo-performance (quando uma cantora interpretaria, num bosque deserto, a canção de Mahler para o poema “I am lost to the world”, de Ruckert), e que consiste numa roupa de corpo inteiro, cortada em tiras sobre um corselete; sobre este, pequenos monitores de vídeo aplicados multiplicam as telas com closes ampliados de pele humana ou de animais, enquanto o visitante ouve o zumbido irritante de uma mosca em seu vôo para um aparelho de matar insetos. Hauten evoca tanto a ampliação sensorial quanto a proteção que a tecnologia nos oferece. Mas o zumbido do inseto sugere a “perdição do mundo” quando a tecnologia se torna a dimensão onde homem e natureza, o humano e o animal passam a se encontrar 7.

7 Comentário no Catálogo do Media Museum in “Are Your Eyes Targets? Media-Art-History”. Prestel, Munique-Nova York, 1997.

A numerização dos pontos (pixels) e sua localização perfeita na tela do computador deram origem à imagem digital, criada segundo modelos matemáticos que a liberaram do objeto. Se essa imagem não precisa mais de um corpo ou uma pele “reais”, os avanços da informática deram lugar por sua vez a uma nova maneira de considerar a matéria e os corpos, desvendando outras dimensões da realidade.

A informática operou uma mudança de escala que transformou a imagem em informação, abrindo novas perspectivas para a ciência e desvendando uma visão do corpo e da pele que se estenderá ao campo da arte. O cruzamento da genética com a informática – que deu lugar ao sequenciamento do DNA, ao mapeamento genético, aos híbridos, à clonagem e à criação dos ciborgs – permitiu a manipulação da matéria em padrões inusitados, enquanto o fim da separação das espécies e a fusão do orgânico com o maquínico suspenderam os limites do corpo. A interatividade gerou novas interfaces, como o teclado, o mouse, o controle remoto, o lápis, as paletas cromáticas e gráficas e até a própria tela de toque, enquanto a virtualidade, mundo simbólico de imagens derivadas dos cálculos, permitiu que nos relacionássemos “diretamente” com elas: as redes, a Internet e a multimídia abriram espaço, igualmente, para novas formas de expressão artística.

A exploração da realidade virtual e da interatividade introduziu novos regimes de tatilidade, que se manifestaram tanto no contato direto da mão com a tela (ou outras interfaces), quanto no apelo a outra espécie de tatilidade do olho: os jogos eletrônicos exigem consonância perfeita entre os olhos e a tela.

Menos diretas, a navegação na rede e o hipertexto introduzem uma “conversação tátil”, não linguageira, na qual predomina a mão, e não o olhar, quando a navegação não é função de uma busca, mas da resposta a uma imagem presente. “Arte da sondagem e do toque” que visa a detectar o que interage, essa “prática tateante” representa uma transformação radical na conduta, passando a solicitar a intuição, que substitui as antigas operações do espírito 8.

Esta foi a visão transmitida por François Zourbichvili na sua conferência “Para Pôr um Ponto Final no “Virtual” (E Comemorar Talvez os Começos da Estética Interativa)”, PUC-SP e Unicamp, outubro de 1998.

No pólo oposto desse congraçamento, Baudrillard distinguirá o olhar da leitura da tela do computador, mencionando uma “pornografia tátil das imagens”, em que não só o tato, mas todo o paradigma da sensibilidade se transformam.

Com o desaparecimento do “sentido orgânico” do tato, a contiguidade epidérmica olho/imagem do computador suprime a distância estética do olhar, “disseminando” na tela nossos olhos que, segundo o crítico, entram numa espécie de “coma imaginário” 9. O artista Bill Viola viu de modo positivo essa aproximação que, no close de um fio de cabelo, nos aproxima “das moléculas em ação”, nos faz mudar de dimensão e encontrar “uma fita de DNA”, “a estrutura do código”, “a forma da informação” 10. Podemos dizer que tem lugar então uma mutação da própria concepção de pele, que deixa de ser um limite do corpo para portar a sua história mais profunda. Uma cena do filme “Gattaca” (1998), de Andrew Niccol, mostra esse estatuto da pele como profundidade numa sociedade gerenciada pela genética. Um personagem nascido “naturalmente” retira a última camada de sua pele, caspa e pelos -tudo o que na superfície carrega seus dados pessoais mais profundos e o expõe à identificação pelo controle. Onde só se admitem indivíduos geneticamente produzidos, “a pele não carrega mais os significantes visíveis para serem lidos à primeira vista, (…) mas é a superfície entre o que nós somos realmente e o mundo (…) o “dead end” da nossa identidade enquanto corpo físico”, escreve Micz Flor a propósito do filme 11. Enquanto os criadores da videoarte interrogaram um corpo íntegro, a arte eletrônica se deparou com um corpo transformado, sem limites, voltando-se assim para a quebra da fronteira entre espécies e para os atritos entre orgânico/mecânico/eletrônico, fazendo da pele um lugar de mutações.

9 Baudrillard, J. “Videosfera y Sujeto Fractal”, in “Videoculturas de Fin de Siglo”. Anceschi, Baudrillard et allii. Ediciones Catedra, Madri, 1990, págs. 27 a 36.

10 Viola, B. “The Visionary Landscape of Perception”, in “Reasons for Knocking at an Empty House – Writings 1973-1994”, Thames and Hudson, Anthony d’Offray Gallery, Londres, págs. 219 a 255.

11 Flor, M. “Written on the Skin”. Metamute.

A sedução da interatividade

Muitos artistas foram seduzidos pela interatividade, que estreitou suas relações com o público, ou pelo avanço tecnocientífico, cujo instrumental puderam até mesmo partilhar. Outros procuraram aliar a exploração da nova tecnologia a uma postura crítica em relação à ciência 12.

12 Nas duas vertentes encontramos nomes como Alba d’Urbano, Christa Sommerer e Laurent Mignonneau, o veterano Jeffrey Shaw, Paul Sermon, Bill Seaman, Jill Scott, o grupo Robotics, Michael Naimark, Agnes Hegedus, Tony Oursler, Teiji Furuhashi, Michael Gaumnitz, Norman Ballard, os brasileiros Eduardo Kac e Edson Barrus -este, no estimulante “Processo Cão Mulato”, apresenta um cão “in progress” que inscreve a crítica da manipulação genética em rigorosos padrões estéticos.

O tríptico “Body Digital Data”, de Jill Scott, é um híbrido tecnológico (rede-computador-vídeo) em que pele e tela se prestam a uma exploração didática das transformações ou hibridações do corpo. Na primeira parte, “Interskin”, essas transformações são objeto de fascínio, quando acompanhadas por três visitantes em três cabines adjacentes; separados nos dois extremos, dois deles vêem uma projeção e podem influenciar as imagens por controle; no meio, o terceiro acompanha as projeções num monitor, mas pode falar com os outros por telefone. Na segunda, “Figurative History”, se mostra o percurso dos híbridos desde Frankestein até nossos dias. A pele do visitante aciona um dispositivo ao tocar nas interfaces esculturais, e personagens apresentam a história do medo da adaptação do corpo à tecnologia. “Immortal Duality” trata do futuro, da possibilidade de transformar os humanos por meio da biotecnologia 13.

13 Conforme descrição de Schwarz, H.P. in “Are Your Eyes Targets? Media-Art-History”, Media Museum – ZKM/ Center for Art and Media, Karlsruhe. Prestel, Munique-Nova York, pág. 141.

The Naturalize / Local Observation Point, 1997
Computer, CD-ROM, video projector, floor brick, metal box, bench (Photo: series of postcards)

Em “The Naturalized/Local Observation Point”, 1996, instalação interativa, os israelenses Aya & Gal recorrem às tecnologias de controle para pôr em questão a cidadania como modo de apropriação dos corpos. É uma proposta de trocar a nossa “pele” de cidadão – a “roupa” com a qual o Estado nos veste – por outro modo de adquirir cidadania, pela rede e pelas telas do computador e do vídeo. Para o trabalho, eles criaram o verbo “to neturalize”, associando o processo de tornar-se cidadão (naturalizar-se) ao de se tornar interligado (pela rede: net-uralizar-se). Alegorizada pela pele, a “neturalização” se dá quando um participante veste uma roupa de látex para ser filmado numa ação cotidiana.

Para a Documenta de Kassel de 1997, um dos participantes do projeto vestiu a roupa e dirigiu um carro com uma câmera presa ao volante, numa área sensível de Jerusalém que abriga instituições estatais e evoca, portanto, a história da dominação israelense sobre a cidade. Amortecida pelo látex, sua sensibilidade foi afinada pelo olho eletrônico que viu e documentou o trajeto. Com o itinerário feito por esse cidadão “neturalizado” criou-se em Kassel um mapa interativo, onde o espectador, numa sala revestida de látex, é convidado a se “neturalizar”, navegando nas ruas da rede.

Segundo Ariella Azoulay, o mapa composto por centenas de fragmentos captados não visa a desconectar o cidadão deste mundo nem fixá-lo em outro, mas colocá-lo numa posição não-territorial: o trabalho não tem lugar num Estado, exclui leis de imigração e não se relaciona com a identidade nacional, mas passa pela rede tomada como pele. Em vez de um processo que determina a identidade e status do indivíduo, de uma relação entre este e a soberania, trata-se para a crítica de um procedimento sem objetivo, de uma ação da ordem do devir, como diria Deleuze, de uma des-naturalização: não “ser” cidadão, mas “devir” cidadão 14.

14 Azoulay, A. “Stories of Hands (1) Becoming Naturalized in Jerusalem”, Conferência na “Documenta”, 1997.

A ruptura tanto da integridade ou homogeneidade física do corpo no primeiro trabalho, quanto da sua unidade política, no segundo, são exemplos de desterritorialização do corpo por meio do contágio tela/pele. A tela pode, sim, deixar de ser intransponível: desde que a pele não se preste a aprisionar o devir, como em “Gatacca”, mas abra o corpo para novas dimensões.

Publicado in
Folha de São Paulo, Caderno +mais!, domingo, 30 de abril de 2000.
Imagem na home a partir de cena de Maruschka Detmers e Jacques Bonnaffe em “Prenome Carmen”, filme de Jean-Luc Godard.
Imagem no início do post: L’Homme qui aimait les femmes (1977) François Truffaut.
Demais imagens com referência no texto.
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