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Povo Yanomami põe a Amazônia na ópera

Em meados do último mês de abril, quatro jornalistas alemães chegaram à aldeia Yanomami Watoriki, em Roraima: Claus Spahn, do “Die Zeit”, Helmut Mauró, do “Süddeutsche Zeitung”, Susanne Burkhardt, da rádio “Deutsche Welle” e Jürg Lemmmer, do canal de TV “Arte”. Seu objetivo era conhecer esse povo que tem papel de destaque na ópera “Amazonas – Teatro-música em Três Partes”, que estrearia em Munique no dia 8 de maio e tem ainda apresentações previstas para São Paulo (em julho), Lisboa (em outubro) e Roterdã (data a ser definida).

Críticos musicais, eles estavam intrigados com a presença de uma população dita tradicional numa ópera, gênero musical europeu por excelência; e queriam saber que participação coube aos índios num projeto contemporâneo e, ainda por cima, com ambições experimentais.

Estudioso desse povo há 30 anos, o antropólogo francês Bruce Albert era o intérprete dos estrangeiros e dos 165 índios, dentre os quais poucos falam português. Mas o idioma não separava apenas os brancos e os Yanomami: dois brasileiros do grupo falavam inglês e francês, mas não alemão, um quinto alemão falava português de Portugal e um dos jornalistas falava francês. Sem uma língua comum a todos, entre brancos se falou inglês, língua para a qual também era traduzida a fala dos índios.

Um imbróglio linguístico como esse não é novidade em expedições antropológicas. Também em outras situações, no nosso mundo globalizado e turbinado pela alta tecnologia, são cada vez mais frequentes encontros que envolvem diversidade linguística e cultural.

Na verdade, o que chama atenção nessa pequena aventura é que ela constitui uma espécie de ponto de convergência com o poder de reunir, de modo exemplar, tanto as ressonâncias dessas grandes transformações do mundo contemporâneo no campo da música, quanto na prática jornalística.

Desde a sua concepção até o modo de ser apresentada, a criação musical envolve hoje, com efeito, uma grande quantidade de elementos não propriamente “musicais” – é justamente por isso que nossos especialistas, formados na mais alta tradição musical europeia, têm de deixar as salas de concerto para se embrenhar na selva. Mas também a prática jornalística foi sacudida pela globalização e pela virada tecnológica dos últimos 20 anos.

É esse conjunto de circunstâncias que faz o editor de música Claus Spahn, um dos nossos viajantes, preferir o título de “jornalista de música” ao de “crítico musical”: assim como faz uma reportagem sobre os Yanomami, ele já foi até a África Central ouvir música dos pigmeus, inspiradora de György Ligeti, um dos mais consagrados compositores eruditos do século XX.

É também a reviravolta operada no jornalismo que leva Jörg Lemmer, do canal franco-alemão “Arte”, a conceber, além do tradicional documentário de televisão, um blog que funcionou até a estréia da ópera, no qual, para veicular suas informações, ele “encenou” um personagem meio ingênuo e desastrado, ora à procura dos Yanomami em plena São Paulo, ora se banhando desajeitado no córrego da aldeia.

A ópera “Amazônia” também é credora dessa mesma ordem e transformações. Contando com profissionais de várias partes do mundo (além dos brasileiros e alemães, há um grupo de portugueses, austríacos, um suíço, um inglês…) e recorrendo às mais refinadas técnicas do som e da imagem digitais, ela aposta na possibilidade de um “encontro” entre universos diferentes, o “tradicional” e o contemporâneo, entre os Yanomami e artistas e criadores europeus e brasileiros, a partir de um personagem e de seu trágico destino: a floresta amazônica e as ameaças de sua destruição.

Um personagem de tal porte certamente “merece uma ópera”, como se costuma dizer. Mas, além desse tema de relevo e interesse mundial num momento em que os problemas climáticos não param de se multiplicar, e da incorporação das tendências mais contemporâneas do campo musical, a obra também procura explorar os novos potenciais das imagens e dos sons digitais.

Trata-se, na verdade, do que os alemães chamam de “teatro-música” que, no caso, é uma “ópera multimídia”, livre dos rígidos códigos do gênero operístico para usar diferentes materiais e suportes – como a imagem e os sons eletrônicos.

Foi assim que os sensíveis microfones levados pelos compositores e técnicos a Watoriki durante a preparação do trabalho captaram não só o canto dos xamãs, mas também os sons da floresta, do vento, da chuva, da fala do povo; eles penetraram em formigueiros, registraram ruídos de animais e pássaros, enquanto as câmeras negligenciavam as surradas imagens “folclóricas” para fazer um minucioso registro de folhas, luzes, cores, águas –concebendo imagens muito distantes da mera “ilustração” e da óbvia “combinação” de sons e imagens.

Como começou

Idealizador do projeto, Joachim Bernauer, conta que, em 2006, quando era então diretor cultural do Instituto Goethe de São Paulo, foi procurado pelo artista José Wagner Garcia, com a proposta de realizar, em Manaus, uma pequena obra multimídia sobre a Amazônia.

Ciente da complexidade das questões de ordem geológica, antropológica, etnográfica, ambiental, climatológica e biológica enfeixadas pela região, convidou o professor e sociólogo Laymert Garcia dos Santos para criar os fundamentos conceituais e definir as questões a serem focalizadas numa “ópera multimídia”.

Conhecedor há décadas da Amazônia por meio de intenso intercâmbio com as sociedades indígenas e da familiaridade com a questão socioambiental, Laymert tinha, para Joachim, a vantagem de ser também um estudioso das transformações da sociedade na era das mídias e ter familiaridade com o mundo da arte contemporânea.

Aldeia Watoriki Foto: Rafael Alves

A novidade e a radicalidade do projeto então formulado atraíram, além do Instituto Goethe, parceiros como a Bienal de Munique, dirigida por Peter Ruzicka e voltada para o experimentalismo, o avançado ZKM (Centro de Arte e Tecnologia da Mídia), de Karlsruhe, sob a direção de Peter Weibel, o Sesc (Serviço Social do Comércio de São Paulo), dirigido por Danilo Miranda, com experiência de trabalho em manifestações culturais de origens diversas, inclusive indígenas.

A esse grupo viria a ser incorporada a Hutukara Associação Yanomami de Boa Vista, presidida por Davi Kopenawa Yanomami, da aldeia de Watoriki –líder indígena mundialmente conhecido, que tornou possível o trabalho conjunto entre cultura indígena e cientistas e artistas brancos. Justamente o que viria a despertar tanto interesse da parte de nossos jornalistas.

Toda a imprensa alemã viria, aliás, repercutir esse mesmo interesse: na semana da estreia e nos dias que se seguiram, os jornais alemães publicaram artigos sobre os Yanomami: entre outros, “Die Zeit”, com duas páginas inteiras e fotos; o “Süddeutsche Zeitung”, de Munique, com dois longos artigos.

Também a rádio “Deutsche Welle” dedicou um programa aos Yanomami, e o canal “Arte” mostrou, no dia da estreia, um documentário realizado por Jörg Lemmer na aldeia de Davi Yanomami. O interesse do público, por sua vez, não foi menor. As entradas para as cinco apresentações da ópera se esgotaram rapidamente.

Quatro anos de preparação

A concepção e a preparação da obra consumiram quatro anos, ao longo dos quais representantes das instituições patrocinadoras, autores e participantes foram à aldeia de Watoriki conhecer os Yanomami, sua vida cotidiana e sua cultura. A equipe brasileira – inclusive os próprios Yanomami – visitou Munique e o ZKM, onde os xamãs entraram em contato com a altíssima tecnologia midiática. Num seminário realizado em São Paulo, os parceiros alemães por sua vez ouviram cientistas, artistas e militantes dedicados ao estudo da Amazônia.

Além desse trabalho conjunto, foi elaborado um estudo das falas (dentro e fora do Brasil) dos representantes das principais forças em confronto na “cena” amazônica, reunindo os discursos científico, político, econômico e religioso, numa espécie de “condensado” que propiciaria o desenho de alguns dos personagens da ópera.

Laymert Garcia dos Santos queria que a cultura e a tecnologia Yanomami integrassem a ópera em pé de igualdade com suas congêneres do mundo branco – num projeto transcultural, em suma. Por isso solicitou a colaboração de Bruce Albert, cujo grande conhecimento e amizade com esse povo (expressa no magnífico livro de sua autoria com Davi Kopenawa, “La Fumée du Métal – Paroles d´un Chaman Yanomami – Amazonie Brésilienne”, que será lançado em Paris em novembro próximo) viria a ser decisiva para precisar o papel dos índios na obra.

Tal colaboração trouxe para cena a cosmologia Yanomami e deu acesso ao entendimento que esse povo tem da terra-floresta, personagem central da ópera.

Por outro lado, também se encontra problematizada na obra a convicção de que os Yanomami detêm um conhecimento extremamente sofisticado do virtual, tendo desenvolvido técnicas próprias para aceder a ele por meio do xamanismo. E foi através da exploração das diferentes modalidades de atualização das potências do virtual que compositores e artistas elaboraram o contraste entre o audiovisual xamânico e o audiovisual tecnocientífico da ópera.

A ópera

A obra tem três partes. Na primeira, intitulada “Tilt”, a música é de Klaus Schedl e o libreto de Roland Quitt tem por base a carta de sir Walter Raleigh à rainha Elizabeth I sobre sua expedição à Guiana. Protótipo do pensamento europeu sobre a colonização como apropriação da terra, esse relato que rememora o primeiro encontro com o Eldorado não é propriamente “encenado”, mas retomado, como numa grande instalação, em três grandes telas: são “big closes” dos atores, que, como numa evocação ou num delírio, repetem as palavras dos conquistadores.

Na segunda parte, a cena é uma floresta amazônica criada por imagens, em meio às quais os espectadores podem caminhar. Intitulada “A Queda do Céu”, esse segmento assume a perspectiva Yanomami da destruição da Amazônia: segundo o mito, são os xamãs que sustentam o céu com o seu canto; mas a xawara, fumaça que emana do metal cobiçado pelos brancos quando extraído do chão espalha epidemias, mata a terra-floresta e o xamã; com o fim do seu canto, o céu cai sobre a Terra, configurando uma espécie de apocalipse.

O compositor brasileiro Tato Taborda, o libretista Roland Quitt e os artistas multimídia Leandro Lima e Gisela Mota conceberam a música e as imagens, que, além do confronto xamã-xawara, comportam ainda a presença dos personagens de um político, um missionário e um cientista, que promovem a expansão da xawara até a destruição de todos.

Na terceira parte, “Conferência Amazonas – Na Expectativa da Eficiência de um Método Racional para a Solução do Problema da Mudança Climática”, Ludger Brümmer (compositor) e Peter Weibel (artista multimídia e diretor do ZKM) retomam, por meio de sons digitais e imagens fractais, a temática da devastação da floresta, agora na perspectiva tecnocientífica. O palco transforma-se numa conferência internacional, na qual um xamã, um economista, um político e uma cientista debatem, através do canto, da fala e de recursos eletrônicos, a informação científica e os prognósticos do futuro da Amazônia.

A música é uma “composição molecular”, sonorização de informações oriundas da floresta, reconfiguradas através dos algoritmos do “jogo da vida” e sinestesicamente visualizadas através de projeções em cubos brancos, que funcionam como blocos construtivos da biodiversidade. Como acontece na experiência xamanística, o som é que comanda o surgimento das imagens: os conferencistas acionam as imagens que suas ações sobre a mesa da conferência desencadeiam e projetam numa tela, como um complexo “datashow”.

No final, as cadeias informacionais da bio e da sociodiversidade são destruídas, retomando, no plano tecnocientífico, o que a segunda parte, “A Queda do Céu”, previra no plano mítico. Os atores se aproximam da plateia munidos de pequenas telas, nas quais surgem imagens dos espectadores captadas no curso das apresentações.

Então, os espectadores devem se encontrar consigo mesmos.

Stella Senra acompanhou um grupo de jornalistas e participantes do projeto Amazônia em sua viagem à aldeia Yanomami no Demini, na Floresta Amazônica, em abril de 2010.

Este texto foi publicado pela primeira vez em 18 de maio de 2010 no portal brasileiro “Trópico”, posteriormente em site do Instituto Goethe, em conjunto com vasto material sobre o projeto.

Imagens de Watoriki – Amazônia: Rafael Alves
Imagens da ópera: Moritz Büchener; Christina Zartmann
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