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Imagens do horror / Horror das imagens

O 11 de setembro e a estratégia das imagens

Se as imagens foram um componente fundamental dos atos de terrorismo de 11 de setembro, se, tanto quanto os aviões, elas constituíram uma arma decisiva nas estratégias dos idealizadores da ação, contribuindo também para a disseminação do horror, no campo oposto a convicção de que elas seriam capazes de disseminar a força do inimigo acabou gerando um horror das imagens que deu lugar, por sua vez, a uma política de rigoroso controle sobre a sua produção e circulação. Primeiro, as fotos das vítimas dos ataques terroristas foram banidas dos jornais e da televisão; em seguida tornou-se também impossível mostrar as vítimas dos bombardeios no Afeganistão; quando Bin Laden surgiu na TV Al Jazeera, as imagens geradas fora da esfera de controle americano passaram a ser barradas, cerco mais fechado ainda com a compra, pelo exército americano, dos direitos exclusivos sobre as imagens comerciais feitas por satélites no território afegão.

Os norte-americanos sempre mostraram grande facilidade em lidar com as imagens – Hollywood é a maior prova disto –, donde sua destreza, tanto em brandi-las na propaganda de guerra, quanto em incorporá-las ao seu aparato bélico: basta lembrar a Guerra do Golfo, quando o país elevou a política de gestão das imagens a um novo patamar. Mas se no conflito com o Afeganistão estamos assistindo a um recrudescimento da luta no campo das imagens é porque, pela primeira vez, os Estados Unidos se viram diante de um adversário igualmente adestrado no manejo desta arma. Os autores dos atentados não dispunham de aparato tecnológico sofisticado, nem de mídia, mas foram certeiros no seu golpe publicitário e acabaram acuando o adversário num terreno que parecia, até então, lhes pertencer.

Não por acaso, o comentário mais comum, logo em seguida aos atentados, referia-se justamente às imagens, às imagens de Hollywood. “Parecia um filme”, diziam todos, como se a melhor maneira de apreender o caráter monstruoso da realidade passasse pela experiência que a ficção cinematográfica propiciou ao público mundial. Com efeito, se graças aos sonhos “vendidos” pelo cinema hollywoodiano podíamos ter, diante das imagens do 11 de setembro, a sensação de já ter “provado” tamanho horror, era como se a ação terrorista tivesse conseguido tornar o “sonho” dos norte-americanos realidade. Paul Virilio já tinha notado que o cinema previu a estética da nova guerra; com diabólica ironia, os idealizadores do atentado pareciam estar devolvendo aos norte-americanos, no plano da realidade, a sua mais prestigiada ficção.

Horror das imagens

Vivemos superexpostos às imagens, e disso a estratégia dos atentados se valeu quando propôs uma ação eloquente, mas passível de ser captado numa única imagem, imagem simples, quase gráfica: duas torres verticais; dois aviões em vôo horizontal; dois choques; duas explosões; dois desabamentos – tudo isso num timing perfeito para a transmissão ao vivo. Uma imagem tão perfeita para a disseminação midiática que acabaria se tornando uma espécie de “vinheta” da ação terrorista. Quem concebeu esse dispositivo sabia perfeitamente como adequar sua ação à sociedade do espetáculo e, mais ainda, como encurralar a reação americana numa contradição: o país que mais ardentemente contribuiu para a fundação do império das imagens seria relegado, de um só golpe, a uma nova espécie de fundamentalismo (mas não era o Talebã que proibia as imagens?) que o obrigava a pôr justamente as imagens sob suspeita.

Essa habilidade em acuar o inimigo num terreno onde ele sempre se sentiu à vontade se vale de um paradoxo que permeia todo o Ocidente, mas que tem na sociedade americana o lugar privilegiado da sua manifestação: se há cada vez menos limites para a exposição do horror nas imagens de ficção, o mesmo não vem acontecendo quando se trata da difusão do horror “real” pelo sistema de informação de massa. Há uma desproporção considerável entre o horror que pode ser mostrado pela ficção e o que o sistema midiático se permite exibir – desproporção que tende a se acentuar cada vez mais, na medida em que a tecnologia não para de ampliar as possibilidades de captar e difundir imagens.

A partir da Guerra do Golfo, desenhou-se no ocidente uma verdadeira estratégia do horror, uma dinâmica entre revelação e ocultação que teve precisamente nas imagens o lugar privilegiado de seu exercício. Numa atividade como a guerra, em que o segredo representa uma arma poderosa, alegações de “motivos de segurança” sempre constituíram uma justificativa ideal para obscurecer (ainda mais) os limites entre a informação e a manipulação. Culminando uma experiência de censura que teve início com a invasão de Granada pelos EUA em 1983, foi a Guerra do Golfo que estabeleceu um novo padrão de controle das imagens, por meio do qual se criava a impressão de uma guerra “limpa”, “cirúrgica”, sem vítimas, sem sangue, sem horror. Segundo John Taylor, foi na busca desse novo padrão de controle que se operou um deslocamento da atenção, dos corpos das vítimas para as armas e os equipamentos – deslocamento atestado, de resto, pela divulgação cada vez mais profusa de informações “técnicas” sobre a guerra1. Quem não viu, nos jornais ou na TV, a imagem de foguetes acompanhada de detalhes técnicos catalogados de modo didático, de aviões e de suas novas capacidades, dos últimos desenvolvimentos de novos apetrechos inusitados da florescente indústria da morte?

1 Taylor, J. Body Horror – photo-journalism, catastrophe and war. Mancheslu University Press, 1998.

Sem dúvida essa revogação do horror das imagens da guerra e o prestígio crescente das imagens das armas vêm sendo facilitados, nos últimos anos, pela natureza cada vez mais virtual dos artefatos desenvolvidos pelos países mais ricos, principalmente os EUA – uma “transferência metonímica” que viria a se acentuar ainda mais no caso específico do Afeganistão – país de baixa tecnologia – na medida em que, no seu estágio atual, as tecnologias separaram ainda mais vítimas e algozes.

Ausência de inimigo visível e de responsabilidade pessoal das unidades militares – esse binômio inaugurado na Guerra do Golfo e de novo em ação no Afeganistão – corresponde, por sua vez, à perda de poder político por parte das populações para se manifestar sobre as decisões de seus governos; sabemos com que facilidade o Congresso americano concedeu poderes extraordinários ao presidente após os atentados (também no Brasil, a condenação da retaliação americana pela maioria da população, atestada em pesquisa de opinião, não se refletiu na posição de total apoio do governo brasileiro à invasão do Afeganistão).

Em oposição aos terroristas que engajaram seus corpos e vidas na ação, matar segundo a tecnologia clean ocidental é, cada vez mais, uma ação “impessoal”, desprovida de horror. Como se os corpos do inimigo não fossem mais o alvo, suas mortes passaram a ser consideradas como um “excesso”, um “efeito colateral”, um produto “acidental” da destruição dos alvos reais: redes de comunicação, campos de pouso, depósitos de munição, armas. Esse disfarce da ação mortífera das armas, assim como a interdição da imagem das suas vítimas, vai de par com um roteiro de enaltecimento da tecnologia bélica (que, de resto, faz as delícias de um certo “jornalismo especializado”). No Afeganistão, dizem-nos, os ataques visam “apenas” os terroristas; no limite, é como se um único homem – Bin Laden – fosse visado pela intensa ação militar.

Miserável, já destruído por guerras anteriores, o país, entretanto nem sequer comporta mais os alvos que, no Iraque, mascararam a morte de 100.000 vítimas. Nesta guerra não há praticamente mais nada a ser destruído, nem há mais “alvos” no antigo sentido militar do termo; restam “apenas” homens.

Pão e bombas

Homens “apenas” – mas como mostrá-los, quando as imagens tornaram-se um dos fronts da guerra contemporânea, e a simples “representação” dessa população no limite da vida já constitui um problema para a propaganda dos EUA? Com efeito, qualquer imagem desses homens, mulheres e crianças, da terra e das ruínas já é, em si mesma, um libelo contra o que o escritor D. H. Lawrence chamou de “vontade de ferro” americana, já constitui uma denúncia muda daquilo que, hoje, alguns preferem chamar eufemisticamente de “caráter assimétrico da globalização”. Um menino montado no seu burrinho, o chão de terra seca, tanques obsoletos – tudo o que se oferece à objetiva deixa à mostra o caráter inglório da invasão militar. Mesmo a desproporção entre o tamanho colossal do míssil e o do homem ao seu lado, explorada por uma recente fotografia, parece ecoar, em nova chave, tal “assimetria”, e atesta a redução da dimensão humana ante o aparato bélico. Atentos à repercussão de tamanhas disparidades, os norte-americanos buscam compensá-la… com novas imagens: do céu, junto com as bombas, caem alimentos2.

2 As imagens de pacotes de alimento atirados aos afegãos pelas tropas americanas, que inundaram a imprensa mundial dão lugar, por sua vez, à exposição de um outro perverso mecanismo que ainda tem a ver com o papel ambíguo das imagens: suas embalagens amarelas fazem com que o pão seja “confundido” com as bombas, embaladas em material da mesma cor.

Na verdade, a questão não se limita à busca de um contraponto a essas imagens, por si mesmas tão eloqüentes. Ela implica também, como vimos, a censura; uma censura que não atinge apenas as imagens das vítimas dos bombardeios, não recalca apenas essas mortes. Embora com intuito diferente, a censura já fora acionada antes, quando ficaram proibidas as fotografias das vítimas dos atentados. John Taylor já observou que a imprensa americana costuma recalcar a morte de seus cidadãos, esconder seus corpos, porque o público não aceita ver seus compatriotas sofrendo; segundo esse analista são também raras, nos EUA, imagens de cadáveres de países de maioria branca (e cristã) com noções de morte, decência e escrúpulos semelhantes às dos norte-americanos. A famosa foto do bebê nos braços do bombeiro após o atentado de Oklahoma, por exemplo, só foi divulgada porque comportava um aspecto “positivo”: estava associada a um serviço público – o Corpo de Bombeiros (não por acaso, justamente a mesma força que ganharia as páginas e telas de todo o mundo após os atentados) – e enaltecia o feito heróico do salvador.

Luto escamoteado, recalque dos cadáveres, da morte: há, com efeito, um dualismo no fato de se esconder a morte e de se mostrar a afirmação da ação, de ostentar a “vontade de ferro” – dualismo que não escapou ao escritor D.H. Lawrence. Como escreveu ele numa carta:

“… tudo na América é fundado na vontade. Só existe esta vontade crispada, vontade de ferro, benevolente, que é finalmente diabólica… É por isto que acho que a América não é nem livre nem valente, mas um país de pequenas vontades estreitas que soam como metal, todo mundo tentando enganar todo mundo…

Vontade e caridade, bombas e pão – perversos binômios que destituem os terroristas do monopólio das ações diabólicas.

Imagens do horror

A imprensa americana – mas seria mais justo referirmo-nos aqui à imprensa do resto do mundo ocidental e desenvolvido – abriga, na verdade, uma espécie de dinâmica do horror, segundo a qual nem todos os corpos têm de ser escondidos. Certos feridos, certos cadáveres podem e devem ser mostrados. No seu estudo sobre a imprensa britânica, Taylor notou que ela não trata do mesmo modo mortes estrangeiras e locais: massacres, fome, epidemias na África, por exemplo, não ofendem os mesmos leitores que se recusam a ver o sofrimento de seus compatriotas nos jornais e na TV. Nas representações ocidentais, nota o autor, a África é uma região pavorosa e excessiva, de enchentes, secas, imundície, fome e doença. Histórias como o recente banho de sangue de Ruanda – mas poderíamos citar, em pé de igualdade, a violência no Brasil ou a convulsão na Colômbia – dão a impressão de que crueldade, pobreza, e incompreensão dos valores humanos são próprias desses lugares – poder-se-ia dizer, aliás, do terceiro mundo em geral. Divulgadas nesse contexto, todos de corpos estrangeiros feridos, especialmente se forem negros, caem na indiferença quando não são considerados como exemplos de culturas repulsivas. Parece que a doença, a fome, a superstição ou os costumes “bárbaros” dos estrangeiros têm o dom, segundo Taylor, de reafirmar a fé do público na ordem ocidental.

Tais indicações são de grande validade quando observamos que a representação dos afegãos pela mídia ocidental também se situou dentro dessa mesma visão preconceituosa do estrangeiro, buscando distanciá-lo do ocidente não só no espaço como no tempo: procurou-se pôr em evidência as vestimentas, os turbantes, as barbas, os costumes – enfim, tudo o que poderia conotar como atraso e arcaísmo o que suas vidas guardam de ancestral (daí a profusão de fotos de corpo inteiro, geralmente raras na imprensa contemporânea).

Se tais traços podem ser tão insistentemente explorados, se a população afegã vem sendo insistentemente objeto desse tipo de imagem é porque uma outra modalidade de horror, menos explícito, encontra-se também em ação: um horror que não diz mais respeito ao que é mostrado ou ao que deve ser ocultado, mas que está no próprio ato de mostrar, de poder mostrar tudo, de poder roubar descarada e impunemente a imagem do outro quando esse não tem poder. Sabemos como a imprensa ocidental estampa com facilidade a face da desgraça e da dor quando suas vítimas não têm defesa. Assim como ninguém precisa pedir autorização para captar imagens dos miseráveis, dos velhos, dos doentes, das crianças, também as ruas de Cabul são um repositório infindável de imagens que podem ser postas a proveito dessa visão de um povo como “outro”, suficientemente “estranho” para que suas dores não sejam, nem nunca venham a ser, as nossas.

Essa violência contra os que não têm poder é tão corriqueira que nem sequer nos damos conta de que ela existe. Com seu caráter agressivo e predatório, ela está sempre presente e se manifesta também entre nós, quando as câmeras de TV entram nas casas da periferia e expõem a dor dos pobres, dos humildes.

Horror da superexposição, da despossessão final dos que não têm mais nada, a não ser a imagem, para ser expropriado.

Publicado na revista Margem, do Programa de Estudos Pós Graduados em Ciências Sociais e História da PUC-SP. Número sobre o tema “Guerra e paz”. N. 14, dez de 2001. Publicado em versão resumida no Caderno Mais! Folha de São Paulo , 4-11-01.
Imagem no início do post: “Tribute in Light”  – Foto: Thinkstock; (dois raios de luz são ligados na noite do dia 11 de setembro todos os anos, desde 2002). Imagem na home: detalhe da mesma.
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