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Genciana amarela, genciana azul – Tarrafal e o estatuto da palavra no cinema de Pedro Costa

Ainsi le promeneur, des montagnes escarpées
ne rapporte pas une poignée de terre,
mais um mot, mot choisi, mot pur:
gentiane jaune, gentiane bleue.
Peut-être est-ce pour cela que nous sommes ici,
pour dire, dire: “maison”, “pont”, “fontaine”, portail”, “cruche”,
“l´arbre et ses fruits”, “la fenêtre”…
Au plus pour dire: “colonne”, “tour”…
Mais pour dire – comprends-moi- ô dire si bien,
que jamais les choses n´eussent, au coeur d´elles mêmes,
osé rêver être ainsi.

Rainer Maria Rilke [1]

[1] Rilke RM. Elegias a Duino. N. 9. Tradução citada pelo fotógrafo Cragie Horsfield em “The world and the word”, Catálogo de sua exposição Relations, Museu Jeu de Paume, Paris, de 31/1 a 30/04/2006.

Sometimes a single word can kill. I don´t know if it can save but a single word can do some good when it is well spoken, well-crafted, well-thought, and delivered at just the right moment.

Pedro Costa [2]

[2] Costa,Pedro. “A closed door that leaves us guessing”. 

Desde que o diretor Pedro Costa encontrou a comunidade de imigrantes caboverdianos estabelecida em Portugal, a palavra passa a ocupar um lugar central no seu cinema. É verdade que, desde Ossos (1999), não são mais atores que estão em cena; quem fala no filme já são esses imigrantes cujas vidas o diretor passa a retratar [3]. No entanto, se a palavra parece ganhar estatuto próprio nos filmes que se seguem, isto não deve ser atribuído a um deslizamento que neles teria sido operado da ficção ao documentário. Pedro Costa não reconhece essa oposição consagrada na história do cinema, nem tampouco revela grande apreço pelo documentário, preferindo reivindicar sua afinidade com o cinema de ficção. Não por acaso, é nesta categoria que destaca os grandes criadores de sua admiração: dentre eles John Ford, Jacques Tourneur, JM Straub e Danièle Huilet, Yasujiro Ozu, Robert Bresson.

[3] Terceiro filme do diretor, Ossos assinala uma mudança de patamar no seu cinema. Pedro Costa  conta que, durante a filmagem, Vanda Duarte lhe perguntou: Agora queres que eu ria ou que eu chore? “A partir dali acabava um filme e começava outro”, comenta o crítico Francisco Ferreira. “Costa começou a apanhar um autocarro para o Bairro das Fontaínhas (local com demolição anunciada), dia após dia, com uma pequena câmara digital (…). “A experiência durou mais de dois anos”, revela o crítico, e deu origem a No quarto de Vanda (2000).  “A vida depende dos trocos – Conversa com Pedro Costa” in A respeito de SITUAÇÕES REAIS – catálogo da exposição do mesmo título com curadoria de Catherine David e Jean Pierre Rehm. Paço das Artes, São Paulo, 2003.

A partir de No quarto de Vanda (2000), quando o diretor adota a câmera digital de fácil manipulação e um sistema de produção modesto, trata-se de colher diretamente a experiência cotidiana e a voz desses imigrantes estabelecidos em Fontaínhas, bairro da periferia de Lisboa em vias de demolição. Não se pense, porém, que os filmes seguintes haverão de perseguir os procedimentos amiúde empregados pelo documentário contemporâneo, ao tratar dos chamados “excluídos” – essa categoria que o capitalismo instituiu e que o cinema não pára de folclorizar. Desde que se aproximou dos imigrantes africanos, Pedro Costa sempre teve em mente sua condição de vítimas do desenvolvimento do capitalismo contemporâneo que perderam seu lugar, foram desapropriadas de sua experiência, de sua história, de sua linguagem. Mas o diretor nunca os mostrou do ponto de vista da exclusão: seus filmes não apenas recusam o recorte sociológico hoje tão corriqueiro, mas também estão muito distantes do tom de crítica social que costuma acompanhá-los.

Pedro Costa estabeleceu laços muito estreitos com a comunidade caboverdiana de Lisboa, o que lhe permitiu definir um método de trabalho particular, que envolve a participação intensa de seus integrantes. Sem dúvida esse convívio desempenha um papel privilegiado na construção de uma obra de grande complexidade, assim como na definição de uma linguagem de extremo rigor e sofisticação; do mesmo modo, essa experiência comum não deixa de contribuir para a definição do estatuto peculiar da palavra que distingue a obra do diretor. Basta lembrar alguns dos recursos mobilizados por Pedro Costa: o extremo rigor que demonstra ao “compor” as cenas, seu respeito aos seus tempos extremamente dilatados, seu modo inusitado de considerar seus “personagens”, de mostrar seu espaço, o modo como o ocupam  – para perceber, se não  a novidade, o caráter único de seu trato com figuras extraídas da chamada “realidade”.

É verdade que, ao contrário de uma tendência atualmente forte no campo documental, nesses filmes não se fala muito, e suas (poucas) palavras estão muito distantes do tão prestigiado tom “confessional” praticamente dominante no cinema de nossos dias. Os filmes de Pedro Costa deixam claro que o processo de desapropriação da linguagem pelo qual passam esses imigrantes os condena, seja ao silêncio, seja a uma fala lacunar, rarefeita. No entanto as obras a eles dedicadas estão longe – mais propriamente nos antípodas – daquele cinema que pretende pôr-se “à escuta do outro”, “outro” que, por sua vez, ao falar, “se assumiria” como sujeito.

Do mesmo modo, cabe ainda ressaltar, o diretor não está preocupado com o também  prestigiado “resgate da memória” que tem gerado, tanto no cinema quanto na televisão, uma profusão de imagens de grande facilidade. Ao registrar as palavras dos imigrantes, Pedro Costa não está à procura da reconstituição daquela plenitude da fala que o documentário praticamente tem como seu pressuposto, nem tampouco preocupado em “dar a palavra” àqueles que foram dela rechaçados. Com certeza o diretor não ignora seu lugar privilegiado na distribuição social da fala; mas se não pretende falar “por” aqueles a quem esse privilégio foi subtraído, tampouco pretende fazê-los “aceder” a esse lugar.  “Haverá sempre, como nesse filme com o Ventura, um oceano entre eu e ele”, disse Pedro Costa a propósito de Juventude em marcha (2006), seu quinto filme; “eu não poderei jamais passar para o lado dele, eu não saberia atravessar esse oceano, para passar para o lado dele, e nem quero, acho que é mais interessante contar com esse abismo, esse silêncio (grifo meu) de uma outra classe social que não a minha.[4]

[4] Entrevista a Pedro Costa. Pedro Maciel Guimarães e Daniel Ribeiro. Realizada em 29/10/2007. Ventura é um dos imigrantes que assume o papel central em Juventude em marcha; ele estará presente também no filme seguinte, Tarrafal (2007).

Pedro Costa gosta da palavra “distância” para definir seu modo de trabalhar com os moradores de Fontaínhas. Por isso, a respeito do seu cinema, em vez de mencionar uma “estética”, ele prefere o termo “ética”, justamente por ser aquele que designa uma postura, o lugar no qual o diretor se coloca em relação aos seus retratados. Na verdade, é uma “distância ética” o que se concretiza nos seus filmes, um afastamento e, ao mesmo tempo, uma aproximação – ou seja, eles inauguram um lugar ao mesmo tempo político e afetivo no qual não “se busca” a comunicação, nem se “encenam” as suas duas instâncias: a “fala” e a “escuta”, mas onde se “põe em cena” uma “fala” de uma ordem muito peculiar, que cabe ainda precisar[5].

[5] Ao falar sobre No quarto de Vanda, Costa explicita assim essa exigência de uma distância: “Amar, dizer sim a alguém ou a alguma coisa com uma câmara (…) implica em saber se nos aproximamos um centímetro ou se nos afastamos cem metros. (…) É preciso saber onde estamos e a que distância estamos do que filmamos. Isto é: reflexão e intuição, por um lado, geometria e sentimento, por outro. In “A vida depende dos trocos – conversa com Francisco Ferreira”. Catálogo da exposição A respeito de SITUAÇÕES REAIS, com curadoria de Catherine David e Jean-Pierre Rehm, Paço das Artes, São Paulo, 2003. Retomando o tema em outra entrevista, Costa afirmou ainda que a distância “é feita por algum pudor. O filme com mais pudor que eu fiz foi No quarto de Vanda, apesar de tudo. Eu dependia muito de um acordo não verbal entre eu e aquelas pessoas, e isso tinha a ver com a distância. Uma distância que era a distância da câmara, a distância que eu estava deles (…). Eu estou nas Fontaínhas, me foi dado uma margem de manobra, eu não posso em quero cruzar umas certas fronteiras”. Entrevista a Pedro Costa. Pedro Maciel Guimarães e Daniel Ribeiro. Op. Cit.

Dentre os recursos visuais por ele mobilizados que contribuem para “concretizar” tal distância, lembremos que o diretor nunca se “põe” em cena com seus personagens; que  costuma evitar os planos próximos e não gosta de mover sua câmera – escapando à  “naturalidade” tão buscada pelo cinema. Também a estranheza gerada pela longa duração de seus planos fixos, constituídos por uma só tomada em geral feita em espaço confinado e sem contra-planos – uma estratégia que se firma a partir de No quarto de Vanda e os absolve de qualquer simbolismo psicológico – parece acentuar a impressão de uma “reserva” do diretor, qualidade que ele partilha, de resto, com seus também discretos personagens.

Do ponto de vista que nos interessa, tal imobilidade parece propiciar as condições ideais para que a palavra venha a “emergir”. No entanto –  pensamos especialmente em Juventude… e nos filmes que se seguem – mais que um espaço de manifestação e acolhida da palavra, no qual esta viria “se alojar” como que “naturalmente”, a imobilidade do plano permite, antes, que a palavra se “desprenda”, que ela se “movimente” de um personagem a outro – já que, malgrado a presença recorrente de dois deles em cena, não se trata propriamente de “diálogo”, nem muito menos de aposta numa “espontaneidade” da fala. A esse propósito, poder-se-ia evocar a noção de “dueto”, com a qual o crítico japonês Tadao Sato qualificou os diálogos dos filmes de Yasujiro Ozu [6] – desde que se entenda a harmonia própria dessa forma musical apenas no sentido do equilíbrio das vozes, e não como uma busca de “entendimento” – como acontece nos filmes do diretor japonês. A tomada única teria assim, como uma de suas funções, captar tais duetos na sua inteireza por assim dizer “sonora”, sem “quebrar” sua harmonia – duetos que, de resto, parecem ser objeto de uma insistente preparação, como num “ensaio musical”[7] . Explica-se assim, também, a ausência de contra-planos no cinema de Pedro Costa – desde que não há propriamente “diálogos” nos seus filmes, e que não se trata, definitivamente, de “comunicação”.

[6] Ao analisar os diálogos nos filmes de Ozu, Sato observa que importa pouco ao diretor conhecer a reação do interlocutor à fala da personagem. Não tendo o diretor a pretensão “de espiar até os seus complexos pensamentos”, para Sato os diálogos de Ozu são concebidos de modo a fazer nascer “harmonia e não confronto, cooperação e não discórdia”. “O diálogo torna-se então uma espécie de dueto”, conclui o crítico.  “Sato, T. “O estilo de Yasujiro Ozu” in Ozu – O extraordinário cineasta do cotidiano. Nagib, L. e Parente, A. (Org.). Editora Marco Zero/Cinemateca Brasileira/Aliança Cultural Brasil-Japão. São Paulo, 1990.

[7] A propósito de Juventude em marcha, seu quinto filme, Costa afirmou: “Ensaiei com cada personagem separadamente, como se fosse um longa-metragem separado para cada um”. Butcher, P. “Documentar uma sensibilidade humana” in Revista Cinética.

Ainda em relação aos recursos visuais que conferem um caráter peculiar à palavra, os analistas já notaram que os olhares de seus personagens nunca se cruzam, nunca são conectados aos objetos que contemplam e se dirigem, sempre, para fora do plano. Com certeza, além de gerar certo “desequilíbrio” (afinal, a direção de olhares no plano não só “acomoda” nosso próprio olhar; ao percorrer as diferentes direções, esse olhar acaba também “delimitando” o espaço – tanto in quanto off, tanto físico quanto diegético), essa dinâmica dos olhares contribui para “suspender” o tempo do plano: se as falas do cinema de Pedro Costa podem se referir tanto ao presente quanto ao passado, tal flutuação temporal não está apenas em relação com a peculiaridade do que é dito; ela se deve também ao fato de que, ao remeter a atenção dos personagens para fora do quadro, sem que o contra-campo jamais “recupere” a continuidade espacial, é como se essas cenas estivessem também “fora do tempo”, ou que pudessem estar “em qualquer tempo”; de fato, as falas desses personagens são desprovidas da “atualidade”, ou mesmo do sentido de “urgência” que caracteriza o documentário, e padecem de uma espécie de “indistinção” temporal.

Em Juventude… , assim como em Tarrafal, trata-se quase sempre de dois personagens em cena. Já sabemos que eles não se olham; também – e por razões óbvias – não olham para o espectador. Como no cinema de outros dois diretores, JM Straub e Danièle Huilet, não há plenitude psicológica nos filmes de Pedro Costa, nem tampouco identificação com o personagem.  Tomados por meio de ângulos inusitados, os corpos em geral estão dispostos de modo muito peculiar no espaço, ora lado a lado, ora em diagonal em relação ao espectador, ora um mais ao fundo e outro mais à frente do plano. Essa distribuição pouco comum faz lembrar, de fato, aquela também nada habitual dos filmes de JM Straub-Danièle Huilet. Os dois diretores não apenas colocam seus personagens em posições pouco usuais no plano, mas ainda operam cortes inusitados nas suas figuras, escapando tanto à cumplicidade com o espectador quanto à transparência do registro[8].

[8] “Os corpos estão sempre despedaçados, descabeçados, fragmentados. O quadro privilegia obstinadamente partes, pedaços: o dorso, a nuca, o joelho, os pés. Frequentemente presos ao chão, sentados, pousados, ancorados, (…) lançando-se do chão, refratários, tensos. Bullot, E. “Sous le plan – notes sur Moïse et Aaron”. In Jean-Marie Straub Danièle Huilet – Conversations en Archipel Mazzota/Cinemathèque Française. Milão/Paris, s/d.

Costa também recusa tanto a cumplicidade quanto a transparência – além de escapar, como os dois diretores, à distinção consagrada entre figura e fundo. Malgrado essas afinidades, não se pode dizer que os filmes do diretor português suscitem a mesma impressão que os da dupla Straub-Huilet. Os corpos dos personagens desses dois diretores são intensos, cheios de sensualidade; dotados de uma presença sólida, “telúrica”, eles parecem “fincados” no plano do mesmo modo como estão “fincados” na terra, de onde extraem, de resto, toda a sua força e vigor. Mas enquanto no cinema de Straub-Huillet o “desajuste” das figuras contribui para a forte tensão que atravessa os planos[9], nos filmes de Pedro Costa os planos parecem “distendidos”, “afrouxados”, e nenhuma tensão sustenta as suas figuras.

[9] Analisando um fotograma de Moïse et Aaraon, Érik Bullot comenta que a postura do personagem como que traduz a suspensão de uma corrida no seu elã. O crítico fala de uma “postura física que mistura tensão ao recolhimento. “Os corpos são imantados por alguma revolta ou cólera, abalados por uma situação à qual resistem, oferecendo-lhe uma recusa soberana. Sua base é o seu elã ”. Também as rupturas do ritmo, as síncopes trabalham a tensão entre planos, a fricção, a pressão, o amolar exercidos pela montagem. Também a crítica Teresa Faucon diz que Straub parece “deter, reter, suspender o elã, a força de projeção de cada plano sobre o seguinte para abrir a montagem e penetrar no coração de seu sistema energético: uma energia, um tempo que se manifesta através de uma imobilidade atravessada e carregada de uma tensão máxima.” Faucon,T, “Impeto” in Jean-Marie Straub Daniele Hullet – Conversations em Archipel, op.cit.

Talvez esta ausência de tensão se deva ao que o crítico Tag Gallagher pôde observar em particular quanto aos personagens de Juventude…: eles são “desincorporados”, notou ele, “como zumbis”, e nunca parecem “completamente aqui”. Com efeito, se o imigrante vive o desenlace com a terra, se o que o caracteriza é justamente seu desenraizamento, os personagens de Pedro Costa não podem primar pela solidez nem pela “consistência” de seus corpos. Destituídos do lugar, de suas relações, de seu modo de viver, eles não desfrutam daquele “domínio do espaço do plano” que os críticos tanto louvam nos corpos que Straub-Huillet põem em cena. 

Mas não é só esse “domínio do espaço do plano” que falta aos imigrantes retratados por Pedro costa. A partir de Juventude…, quando começam a ser deslocados de Fontaínhas, também sua “ancoragem temporal” passa a se tornar cada vez mais aleatória: ora a cena apresentada parece estar no passado, ora no presente – como se, destituídos do seu lugar, eles estivessem também, de certa forma, “perdidos” no tempo. Como escreveu Gallagher a propósito dessas presenças: “(…) são visitantes. São formas, figuras em composições inacreditavelmente belas”[10].

[10] Gallagher,T. “Straub Anti-Straub”.

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