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Moda, espetáculo, cultura

Aparentemente a reunião destas três palavras sugere que se considere a moda – o tema central da discussão – do ponto de vista do espetáculo e da cultura. De um lado se teria, portanto, a moda inscrita no espetáculo, como parte desse tipo de manifestação que reveste, molda e se apropria de quase todo tipo de acontecimento nos nossos dias. O espetáculo tomou conta do mundo  artístico, político, e invade até os domínios mais recuados da vida privada.  Não é preciso lembrar aqui como a política tem se tornado, cada vez mais, um espetáculo, em que a imagem pública transcende o conteúdo dos gestos e, também, das ações. Não é preciso lembrar  como a espetacularização  envolve a chamada “indústria da violência” – na tv principalmente –, como rende dividendos, além de gerar, dentre os seus inúmeros subprodutos, a disseminação do medo. Nem é preciso lembrar, enfim, como a vida íntima pode ser exposta, vendida, explorada nas páginas das revistas, na televisão.

A moda seria tomada, nesta vertente, do ponto de vista da sua extrema visibilidade, do seu brilho, da criação desse novo tipo de star system constituído pelas top models,  da aura que envolve  esse mundo efêmero que se baseia justamente na “mudança” ou na transformação constante, nesse mundo feito de coisas passageiras mas que, por estarem sempre passando, parecem ter existência perene.

De outro lado se teria a moda como cultura, isto é, tanto como prática geradora de representações ou de signos capazes de serem estendidas a toda a sociedade, quanto como prática que se inspira na cultura, seja quando opera a  reciclagem de comportamentos humanos ou de manifestações já existentes – aproveitamento da cultura popular, por exemplo – seja quando faz  prospecção das chamadas “tendências”, isto é, quando procura detectar linhas ou traços do comportamento social capazes de “antecipar” aquilo que poderá, no futuro, se tornar moda. Nesse sentido a moda seria como um “operador” da cultura.

Gostaria de articular de outro modo estas três palavras. A moda deixaria de ser a questão central, referida  a dois mundos diferentes – e até mesmo opostos – o mundo do espetáculo e o mundo da cultura. O espetáculo passaria a ser o eixo ou o elo que aglutinaria ou incorporaria, tanto a moda, quanto a cultura. Não teríamos, então, a moda como espetáculo ou como cultura, numa espécie de alternância excludente, mas a cultura e a moda examinadas, conjuntamente, como espetáculo.

Quando falo em cultura como espetáculo me refiro a coisas muito palpáveis hoje em dia. Por exemplo, as mega-exposições que mobilizam dezenas de milhares de espectadores, que costumam ser anunciadas como verdadeiros espetáculos que não se pode perder – independentemente do interesse, formação, familiaridade ou capacidade de entendimento do público massivo que elas convocam. Evidentemente esta é uma das conseqüências do casamento do capital financeiro com a arte – e não é só neste setor que ele tem penetrado –, que faz da arte antes de tudo um “investimento” que deve render: e render aqui significa quantas vezes a catraca rodou, não só para contabilizar os lucros, mas para medir o público espectador – como se faz na televisão – em quantidade, quantidade que parece substituir a qualidade da experiência ou da percepção que a obra de arte pode despertar, pela quantidade de olhos que percorreram a sua superfície.

Fila em frente ao Centro Cultural Banco do Brasil – Leo Martins / Agência O Globo

Tal espetacularização não se restringe, evidentemente, ao campo da alta cultura. Ela explora também o terreno da cultura dita popular: basta ver esse intolerável programa Via Brasil, onde rendeiros do Ceará, doceiras de Minas ou inventores de fundo de quintal são oferecidos, em nome da diversidade da cultura nacional, como prova da indústria ou da criatividade do povo brasileiro – uma diversidade que, diga-se de passagem, a própria televisão veio destruir pela homogeneização. Também o cinema brasileiro, nos últimos anos tem se dedicado com afinco a representar o mundo dos pobres, dos marginais e a sua violência, em obras que muitas vezes têm mais impacto pela sua espetacularização do que pela qualidade artística.

Não estou aqui criticando a chamada “democratização da arte”, e nem considero como tal estas práticas recentes aqui enumeradas. Pois a democratização da arte não é o acesso ao seu “consumo”, mas o acesso – muito mais difícil – à complexidade da produção artística; a democratização implica não só na possibilidade, mas na capacidade  do público aceder às questões tratadas pelas obras.

Quando falo de moda como espetáculo não me refiro às inúmeras intrigas ou pequenos feitos das top models, que tanto encantam o público. Isto também é parte, um resíduo do espetáculo, mas é o que menos interessa. Penso numa manifestação mais subterrânea, menos ostensiva, que indica como o espetáculo da moda captura a todos – não apenas aqueles que podem se vestir, que participam do mercado, mas também aos que dele nunca se aproximaram.

Há uma figura na cidade de São Paulo que sempre me intriga. São aqueles meninos que pedem esmola nas esquinas, e que imaginamos completamente excluídos do consumo, do mercado, da moda enfim. Hoje em dia é muito comum vê-los com os cabelos descoloridos, com luzes, mesmo se não têm sapatos, camisa, ou o que comer. Sempre me pergunto como olhá-los. Como ler o seu desejo de “estar na moda”? Como uma vontade desesperadora – legítima? – de “fazer parte”, de “ser como os outros”, enfim, de “pertencer, mesmo que vicariamente, ao mercado? Como uma prova de que a moda, finalmente, atinge a todos, mesmo os que, não tendo a ela acesso, arranjam um jeito de “se expressar”, ou de “ter uma imagem” por meio dela? Que a moda é, assim, como dizem os sociólogos, fator de “integração social” ou indicativo de “modernização” da sociedade? “Cultura”, enfim, para todos?

Acho que a chave para entender essa dúvida está nesse desejo que o mundo do espetáculo tanto estimula de que cada um “tenha uma imagem”, “se expresse”, mostre a sua “diferença”, operação que tanto pode ser feita com muito quanto com pouco, e até com quase nada.

O fundamento da moda é justamente a construção da diferença. Não é próprio dela, justamente, a cada coleção, apresentar algo de novo, ou de diferente da anterior? Ou, para usar uma terminologia mais recente, apresentar novos “conceitos” – isto é, novos significados embutidos no objeto, que são ainda mais importantes que o próprio objeto? Do ponto de vista do conceito, nem a materialidade do que se veste não importa mais. Desde o yuppie, passando pelo grungie e chegando aos clubbers, a roupa atua praticamente como uma mensagem que anuncia o pertencimento a um certo tipo de grupo ou tribo, a adoção de determinado comportamento, enfim um “modo de ser” “próprio”? Nesse estágio em que a diferença não está mais no objeto mas no conceito, o que importa nem é mais o que se veste, mas a qualidade de statements que cada um pode  afirmar através do que veste. Por isto, a diferença pode ser e é cada vez mais imaterial, podendo os significados embutidos no objeto se tornarem  mais importantes que o próprio objeto.

Mas, por outro lado, não é o objetivo da moda atingir a todos? Estender essa “diferença” a todos, generalizá-la, isto é fazer com que ela deixe de ser “diferença”? Parece, então, que o objetivo da moda, principalmente nesta fase do capitalismo da sociedade globalizada, é paradoxal: homogeneizar a diferença.

Isto pode ser dito de outro modo

Um filósofo já disse que o mercado é o único universal que existe em nosso tempo; só existe um valor na sociedade, o valor de troca, que é um valor abstrato. Tudo obedece, portanto, ao valor de troca, isto é, ao mercado, que erodiu por sua vez todos os outros valores. Na sociedade onde predomina o mercado, não é mais possível produzir diferenças que não sejam de valor abstrato. Todas as diferenças produzidas são produzidas segundo a lógica do valor, isto é, para vender.

Vejamos um exemplo: a  desestruturação do sahri, roupa tradicional oriental, proposta há alguns 10 anos atrás no Paquistão como uma ‘renovação’ ou uma reinterpretação” do sahri. Uma intelectual paquistanesa e grande conhecedora da tradição comentou, há alguns anos atrás, que na verdade esta era uma destruição do sahri tradicional que, desestruturado ou reinterpretado, perdia justamente o seu sentido dentro da tradição cultural paquistanesa. O mesmo se pode dizer de propostas de costureiros ocidentais que lançam coleções “inspiradas” na roupa russa tradicional ou em outras tradições, como tanto se vê. Com certeza, nessa operação não é a tradição que conta, mas ela entra apenas como matéria prima para recombinações, para que a roupa seja proposta num outro circuito – no mercado global. Essa pequena diferença:  desestruturar, recompor, visa não apenas adaptar essa roupa de confecção tradicional à confecção de massa, mas sobretudo por a proveito a tradição num circuito que, por não ser o tradicional dessa roupa, compra justamente esse  “a mais”, ou essa “diferença”.

Do ponto de vista da dinâmica desse processo econômico, no campo da moda tanto faz produzir um chapéu de plumas, reciclar um gorro dos Andes, ou integrar o boné do rapper –  não faz a menor diferença do ponto de vista do processo real. Quanto mais homogeneização, isto é, quanto mais o processo de produção de moda se integrar à dinâmica do mercado, quanto mais qualquer produção de roupa for determinada por uma indústria global, mais se apaga a diferença. Toda a produção de diferença dentro do mercado não tem como dele escapar. E mais: quanto maior for a homogeneização na moda, mais exasperada fica a segmentação  do mercado em “tribos”: roupa para gays, para jovens, para clubbers, neo-hippies, yuppies, etc).

Esse paradoxo da anulação – ou mesmo da degradação – da diferença pode ser analisado num filme que o diretor alemão Wim Wenders fez sobre o estilista japonês Yamamoto. Nele o estilista afirma se inspirar nas fotos dos anos 30 dos trabalhadores japoneses, dos operários, enfim, num certo tempo em que o vestuário atendia a uma função e era, ao mesmo tempo, a função. O que fascinava o estilista era que a roupa do operário, feita artesanalmente para um único indivíduo e usada no trabalho diariamente, acabava adquirindo como que uma “alma”, do seu usuário e da sua  função.

Essas fotos são do mesmo gênero daquelas que o grande fotógrafo alemão August Sander produziu na mesma época – e que foram tão bem analisadas por Benjamin. Elas mostram como se apresentavam as diferentes  categorias profissionais da sua época: o juiz, o camponês, o funcionário público, etc. Tais fotografias, que funcionavam como uma amostragem de modos de vestir e de ser da época, só foram possíveis  num tempo em que as coisas duravam,  em que as pessoas eram o que usavam porque usavam o que eram. Assim, comenta Benjamim a propósito do retrato de Shopenhauer: as dobras do casaco são como as rugas do rosto do filósofo, numa espécie de mimetismo que só poderia ser fruto da adequação da roupa ao seu usuário, do intenso e íntimo convívio entre ambos. 

Esse método adotado por Yamamoto em relação aos trabalhadores japoneses dos anos 30, para inspirar suas criações revela um paradoxo. Para ficar em termos benjaminianos, Yamamoto extrai a “aura” da roupa dos operários e recria, a partir dessa força, uma roupa que, a princípio, carregaria ou incorporaria toda esta “carga” vital. Mas as coleções só duram uma estação, logo são substituídas por outras roupas, e o estilista tem de negar sua inspiração – que levava em conta justamente o acúmulo do tempo, o uso prolongado que imprimiria um ar próprio à roupa. A própria dinâmica da moda o obriga a negar a “alma” da roupa, aquilo que só pode ser adquirido com o passar do tempo. Além disso, pode-se acrescentar que sua roupa não será usada por um indivíduo toda a sua vida, como no caso de Shopenhauer,  mas por indivíduos quaisquer; e não tem e nem tomará, como no caso do filósofo, a forma do seu dono. Se o espírito da roupa dos operários derivava diretamente de duas condições: a confecção para o uso de um indivíduo específico e o uso constante por longo período, a roupa desenhada por Yamamoto se destina a durar alguns meses, a conviver pouco com um corpo – um corpo qualquer, sem as marcas distintivas dos operários dos anos 30 – corpo que não será marcado por ela nem lhe deixará suas marcas. Certamente não lhes nascerá nenhuma alma.

Esse  paradoxo da homogeneização da diferença faz, por exemplo, com que a mulher que usa o jeans ou o rapaz que põe o tênis, ambos fabricados aos milhões na última coleção, se sintam “diferentes”, e, ao mesmo tempo “iguais”,  isto é, “ na moda”,  porque milhões de outros usuários estarão vestidos exatamente da mesma maneira. Estar na moda seria, então, ser “diferente”, tão “diferente” quanto milhões de outros seriam, ao mesmo tempo e igualmente,  “ diferentes”. Essa “atitude”(o termo está sendo usado em ligeiro desvio em relação ao usual no mundo da moda):  “se sentir diferente”, “único”, é justamente aquilo que confere às pessoas a sua “imagem” – este operador privilegiado do mundo do espetáculo – ou que as faz “se expressar’ através da roupa, se sentir  “mais eu”, como se diz.

O desejo de “se expressar” ou de produzir uma imagem através da roupa, tão comum hoje em dia, de manifestar uma interioridade “própria”naquilo que ela teria de “único” consiste paradoxalmente com o desejo de “parecer-se” com todos, estar vestido ou penteado como todos, em não ser diferente da maioria. Só a universalidade do mercado pode executar tal proeza. Por isto o psicanalista Félix Guattari avançou a hipótese de que talvez a última verdade do capitalismo seja a imagem: se o que importa no capitalismo é o valor, talvez o valor derradeiro seja o valor da imagem.

Talvez essa homogeneização gerada pela  universalidade do mercado explique porque o menino da esquina se sente tão na moda, tão dentro do mercado quanto a mulher do jeans. Ou explique porque, como mostrou reportagem recente,  muitas meninas menores estejam  cumprindo penas por roubos que visavam unicamente arranjar dinheiro para “consumir”, comprar roupas, “gastar”, como elas declararam. Num certo sentido “ter” ou “não ter” os meios para adquirir os objetos não impede que se participe – pelo menos imaginariamente – do mercado. Pertencer ou não ao mercado deixa de ser a questão principal, pois a ele se pode aceder concreta e imaginariamente – como o jovem do tênis – ou, apenas imaginariamente, com um vidro de água oxigenada.

Duas ressalvas

Evidentemente o exemplo do menino pobre ou das garotas da FEBEM não deriva de nenhum populismo, não pretende condenar o mercado em nome dos excluídos: estou usando esta situação extrema apenas para demonstrar a amplitude e o poder de penetração do mercado, e o grau de complexidade da sua atuação.

Segunda: falei muito de “imagem”, e aqui todos estão acostumados com esse uso do termo. Mas não gostaria que ficasse no ar a idéia de que o oposto disso seria a “autenticidade” de cada um, o seu “eu” verdadeiro”. Se algo pode ser oposto à imagem como representação mental de si e do outro, seria o que o filósofo Gilbert Simondon chamou de “processo de individuação”. Este é o modo como se concretizam efetivamente as potencialidades dos indivíduos segundo as forças que se encontram tanto no homem quanto fora dele, encontro de forças que o fazem se transformar, ou “se individuar”. Não se trata, portanto, de um processo apenas interior, como as pessoas comumente falam de suas descobertas íntimas, mas de um encontro com as forças  do mundo, ou, poder-se-ia dizer, com o real.

Vou tomar como exemplo dessa individuação um filme que trata justamente de moda, Blow up de Antonioni, cujo personagem principal é um fotógrafo de moda, e um fotógrafo de moda de grande sucesso. O filme é de 1967, mas o universo da moda ali retratado não difere tanto do de hoje; nosso fotógrafo não pára, é constantemente movido pela energia desse mundo em vibração, trata as  “modelos”  como objetos, e é perseguido pelas jovens que querem se tornar modelos. Num momento de lazer, ele faz algumas fotos da paisagem de um parque. Na sua revelação, surge uma revelação de outra ordem: entre as folhas, há uma sombra, e as sucessivas ampliações que vai fazendo mostram o cadáver de um homem e uma mão segurando um revólver. Saindo do mundo da ilusão e do artifício – que é o da moda – o acaso o fez cruzar com o real, na sua manifestação mais incontornável – a morte.

O filme conta a peregrinação solitária desse fotógrafo – já que nenhum de seus amigos ou companheiros de trabalho quer ouvir ou partilhar da sua história -– para deslindar o mistério – enfim, para entrar em contato com o real. É muito significativo que Antonioni tenha escolhido um fotógrafo de moda, que lida com a ilusão, um homem que fabrica imagens, para se defrontar com a realidade crua da morte. Toda a sua peregrinação solitária – a sua entrada em contato com o real, ou melhor, com o mistério do real – é o que eu chamo de processo de individuação. Em sua busca o personagem se transforma, suas relações com o outro se transformam, sua relação com o trabalho também – enfim, tem lugar o seu processo de individuação como abertura para o mundo, para o acaso e para a morte.

É isto que eu oponho a termos como “autenticidade”, auto-expressão, originalidade, verdade interior, enfim a toda esta parafernália que quer nos fazer crer que “eu sou mais eu” através da imagem.

Palestra pronunciada em mesa redonda na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2008.
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