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Kogi e a busca do invisível – a fotografia no cinema de Paula Gaitán

A interlocução que se estabeleceu, nos últimos vinte anos, entre diferentes modalidades de imagem e o campo das artes plásticas tem dado origem a uma intensa produção de obras, o que coloca em novo patamar tanto a reflexão sobre a imagem e seu estatuto, quanto a investigação sobre as novas configurações do campo das artes plásticas.

A interlocução do cinema com a fotografia, em particular, não é um fenômeno recente. Mas sua insistente recorrência nos últimos anos  ganha novo interesse e assume novas modalidades, não apenas devido às mais recentes transformações da fotografia, mas do próprio cinema na sua abertura ao campo das artes plásticas. Pensemos na novidade das práticas inauguradas pela fotografia na sua aproximação com as artes plásticas e com o cinema: nas operações com arquivo fotográfico de Rosângela Rennó, nas construções com luzes na paisagem de Rodrigo Zeferino, ou, ainda, nos Stills de Cindy Sherman e nas fotografias encenadas de Jeff Wall; numa relação ainda mais direta com o cinema, artistas da fotografia como Lucas Simões, Ding Musa, Denise Gadelha, Carlos Dadoorian e Patricia Gouvêa têm trabalhado especialmente o movimento na fotografia, sua relação com o estático,  explorando a distensão e a redução do tempo na fotografia. Por outro lado, tenhamos em mente o  movimento que faz o cinema na direção das artes plásticas:  seja com os  experimentos de consagrados diretores nesse campo (Kiarostami, Chantal Ackermann, dentre outros), seja quando modalidades e usos da imagem desenvolvidas no campo da video arte e das instalações são acolhidas pelo cinema (Erik Rocha, Paula Gaitán); seja, ainda, quando este entra literalmente nos museus por meio de obras de artistas que tem filmes (Stan Douglas)ou o aparato cinematográfico (Anthony McCall) como base de seus trabalhos.

Além dessas transformações que atingiram os territórios desses media,  também é preciso levar em conta,  no campo analítico, uma recente mudança de paradigma no entendimento da fotografia. Desde a ontologia proposta por André Bazin  e sustentada por teóricos como Roland Barthes, a imagem fotográfica tem sido considerada como uma espécie de “congelamento˜, de  “embalsamamento” do objeto, e como tal,  associada à morte em função desse seu “poder” de deter o fluir do tempo cronológico.

Apesar de ainda predominante no campo analítico, a ontologia baziniana tem sido  contestada nos últimos anos e, com certeza, não dá conta do modo com a fotografia tem operado mais recentemente – tanto nas diversas situaçoes aqui evocadas quanto,  particularmente, no caso que examinaremos, o filme Kogi, de Paula Gaitán.

Com efeito, para focalizar o uso que dela faz a diretora, é preciso deixar de lado a interpretação baziniana fundada no no tempo cronológico, no embalsamamento, para levar em conta o deslocamento, proposto pelo crítico inglês Damian Sutto, desse paradigma da morte. Em seu livro Photography Cinema Memory – The crystal image of time, de 2009, Sutton desassocia a fotografia das interpretações fundadas nas idéias de congelamento e  morte, extraindo-a do domínio do tempo cronológico e do instante. Trilhando o caminho aberto por Deleuze ao retomar a filosofia de Bergson para o cinema, o crítico busca inscrever a fotografia na duração, propondo  transpor, para o campo fotográfico, a noção de imagem-tempo – mais precisamente de imagem-cristal – cunhada pelo filósofo.

Na análise de Kogi, levarei em conta as possibilidades analíticas abertas por essa nova leitura da fotografia na sua relação como o cinema, o tempo e a memória – trabalho que, também numa operação de “passagem”, transpõe para a fotografia a noção deleuziana de imagem-tempo, concebida na sua origem para o cinema.

A fotografia como imagem-cristal

Sabemos que Deleuze recorreu ao entendimento que Bergson tinha da duração, do tempo, para a criação de seu complexo conceito de imagem-cristal –  que designa precisamente a coalescência de uma imagem virtual com uma imagem atual, para constituir uma unidade indivisível. Concentremo-nos nessa distinção, relembrando o modo como Deleuze retoma Bergson:

“O que é atual é sempre um presente. Mas, justamente, o presente muda ou passa. Pode-se sempre dizer que ele se torna passado quando já não é, quando um novo presente o substitui. Mas isto não quer dizer nada. Certamente é preciso que ele passe, para que  o novo presente chegue, que passe ao mesmo tempo que é presente, no momento em que o é. É preciso, portanto, que a imagem seja presente e passada, ainda presente e já passada, a um só tempo, ao mesmo tempo. Se não fosse já passada ao mesmo tempo que presente, jamais o presente passaria. O passado não sucede ao presente que ele não é mais, ele coexiste com o presente que foi. O presente é a imagem atual, e seu passado contemporâneo é a imagem virtual, a imagem especular”[1].

[1] Deleuze,G. A imagem-tempo. Editora Brasiliense, São Paulo, 2005. p. 99.

É inspirado no filósofo que Deleuze destaca a imagem virtual de outras imagens, também relacionadas ao tempo:

“Se Bergson chama a imagem virtual de “lembrança pura”, é para melhor distinguí-la das imagens mentais, das imagens-lembrança, do sonho ou devaneio, com as quais corremos o risco de confundi-la. Com efeito, essas imagens são virtuais, mas atualizadas ou em vias de atualização em consciências ou estados psicológicos. E elas se atualizam necessariamente com referência a um novo presente, a outro presente que não aquele que foi: daí esses circuitos mais ou menos amplos, evocando imagens mentais em função das exigências do novo presente que se define como posterior ao antigo, e que define o antigo como anterior, conforme uma lei de sucessão cronológica (a imagem-lembrança será, pois, datada).

A imagem-virtual em estado puro, ao contrário, não se define em função de um novo presente, com referência ao qual ela seria (relativamente) passada, mas em função do atual presente, do qual ela ela é o passado, absoluta e simultaneamente: particular, ela é no entanto “passado em geral”, no sentido em que ainda não tem data. Pura virtualidade, ela não tem de se atualizar, já que é estritamente correlativa da imagem atual, com a qual forma o menor circuito que serve de base ou de ponta a todos os outros. Ela é a imagem virtual que corresponde a tal imagem atual, em vez de se atualizar, de ter de se atualizar em outra imagem atual. É um circuito já aqui mesmo atual-virtual, e não uma atualização do virtual em função de um atual em deslocamento. É uma imagem-cristal, não uma imagem orgânica.”[2]

[2] Deleuze, id. p. 100.

A “passagem” que  Sutton opera da imagem-cristal, do cinema para a fotografia, compreende a incorporação, em todas as suas etapas, do entendimento do tempo desenvolvido por Bergson e retomado por G. Deleuze. O que o leva, por um lado, a se desvencilhar da noção de  tempo cronológico como sustento do paradigma baziniano fundado na fixidez e na morte ao; e, por outro, a inscrevê-la na duração tal como Bergson formulou esse conceito – o que permite igualmente ao crítico  descartar a noção de instantâneo, que tem regido o entendimento mais comum da relação da fotografia  com o tempo. Segundo  Sutton, a imagem fotográfica também é dotada de uma imagem virtual, que com ela coalesce, extraindo-a da eterna fixidez do presente. Como isto se efetiva?

O melhor modo de entender o que o crítico propõe é tomando um exemplo de construção de imagem-cristal na fotografia, o caso dos Stills de Cindy Sherman. Nesta série a artista posa para fotografias relacionadas ao cinema: são  imagens que “lembram” cenas de filmes, mas não se referem a nenhum filme específico; o espectador tem sua curiosidade atiçada por esta lembrança, mas não consegue atinar com o filme, sendo levado a convocar a própria memória e cultura visual, a convocar suas imagens,  para “aceder” ao trabalho. O que não apenas chama a sua atenção para a diferença em relação ao filme/cinema, mas também desvenda, segundo Sutton, a estrutura própria da imagem fotográfica. Pois essa operação autoconsciente de procura hesitante: isto me lembra uma cena de um filme… porque? de que filme se trata? quem é este personagem? será que ele existe no cinema ou foi criado para a fotografia? – perguntas que não lhe permitem “chegar” a nenhum filme ou “imagem” real, configuram um “trabalho” da memória e da imaginação por meio do qual se vislumbra a imagem cristal. Todo esse “arquivo” convocado pelo espectador, que nunca se atualiza numa imagem coincidente com a fotografia realizada por Schermann, é a imagem virtual; e constitui, com a fotografia dada, a imagem-cristal.

Como imagem cristal, a fotografia não aciona apenas o passado, ela tem também o futuro no seu âmbito . Sutton extrai um bom exemplo dessa complexa operação da Pequena História da fotografia,  quando W. Benjamin descreve sua reação à foto do casal Dauthendey: o crítico exprime sua  incapacidade, à cada contemplação, de deixar de ver no rosto da esposa, a marca do suicídio que ela cometerá futuramente, isto é, após ter sido fotografada. O crítico alemão se refere aqui ao que poderíamos chamar de presença virtual de um  passado que coexiste com a imagem, mas que não é passado em relação ao momento que ela reflete: a esposa estava viva nesse momento, mas estará morta no futuro, quando o Benjamim contempla a foto. Isto significa que também futuro se sobrepõe à fotografia como imagem virtual, com ela “coalesce” e forma uma imagem-cristal. Trata-se da evocação de de um imaginário construído a partir dessa morte em particular, de uma imagem virtual que não se atualiza em outra imagem atual (nós não a vemos morta), mas que coabita com a imagem fotográfica atual.

Gaitán.

Gaitán constrói seu filme com base em imagens fotográficas[3] dos Kogi – povo que, para preservar suas tradições, se retirou para a montanha, Sierra Nevada, ao norte da Colômbia, assim que os colonizadores se instalaram na América do Sul. Mas quando ela coloca fotos desses índios  no seu filme, elas não estão sendo tomadas como meros registros de um tempo passado, como “embalsamamento” de um dado momento; elas são trabalhadas segundo a perspectiva definida pelo filósofo, como imagens cristal.

[3] Os filmes mais recentes de Paula estabelecem uma relação extremamente rica entre imagem cinematográfica e fotográfica. Integrada a esses filmes no contexto das mais recentes transformações do campo fotográfico, fotografia tem nesses filmes um papel, no mínimo, intrigante: por meio do uso extremamente original da fotografia que, guardando sua função indicial é intensamente  trabalhada como “objeto”, filmes como Vida, Diário de Sintra, e Agreste, por exemplo, levam em conta  novas modalidades artísticas, distribuindo as fotografias em espaços internos ou externos, na natureza (na água, na terra, nas árvores, etc), em construções muito semelhantes às de objetos e imagens nas instalações e nos ambientes.

Vejamos como isso se dá. Apesar de vários indícios nos sugerirem que são fotos antigas, envelhecidas pelo tempo, não é esse passado que contribui para fazer delas  imagens cristal. As imagens (e os sons de Kogi) não estão num tempo determinado, cronológico. Elas “parecem” antigas, sem que esse signo as remeta diretamente ao passado, ao tempo de onde foram extraídas. Em virtude do tratamento que lhes é dado, elas mais parecem “fora do tempo”, da sucessão temporal, abrindo-se para o tempo da duração. São cortes pouco ortodoxos, fusão com imagens em movimento, iluminações de partes e ampliação de por meio do passeio de lentes sobre sua superfície além de uma relação particular  e não sincrônica com a trilha sonora – por meio dos quais as fotografias  se  “eclipsam” como representação de uma dada realidade (como retratos dos Kogi) para se abrir a uma outra dimensão.

Desde seu início, o filme indica que suas imagens não fazem parte do realismo tão característico das imagens cinematográficas. A lua é a primeira imagem e, semiencoberta pelas nuvens, já sugere o procedimento de sobreimpressão que será constitutivo do filme. São vários planos, separados por cortes bruscos que a fazem pular cada vez a um ponto diferente da tela, como a sugerir que não se trata de uma imagem em continuidade, no presente da fotografia mas, antes,  da presença de uma  imagem “desrealizada”, que não está situada em nenhum tempo preciso – de uma “lua em geral”. Dando prosseguimento a essas imagens não “situadas”, segue-se a imagem da mão de Paula que se move contra a luz (no que poderia ser mais uma sobreimpressão) – um tropo já familiar no seu cinema, no qual essa dá o “passe”, dá lugar à expressão. Seguem-se  imagens novamente não-situadas, espumas que se fazem e desfazem, tornando a tela uma superfície na qual as imagens não se “impregnarão”, no sentido realista, mas “deslizarão”, passarão, serão substituídas umas às outras. Diferentemente de Diário de Sintra,  Kogi se dedica a um outro tipo de experimento, trabalhando “na superfície” da fotografia  de diferentes maneiras: por “soma” – superpondo-lhe imagens em movimento, ou por “subtração”,  “extraindo” ou “escavando” camadas da imagem como que à procura do invisível que estaria por trás delas.

No sentido apontado por Sutton, a fotografia é aqui trabalhada como imagem-cristal: são imagens atuais, (apresentadas no suporte papel/filme), às quais ora se sobrepõem outras imagens atuais (céu, água, espuma, floresta – sempre imagens da natureza) – levando o espectador a  uma operação imaginária que tenta constituir a cosmologia Kogi, ora estas imagens são vasculhadas,  por luzes ou lentes de aumento, em busca de um invisível que tampouco se atualiza. 

A primeira fotografia é introduzida após a imagens das espumas, por um corte que mostra o céu carregado de nuvens. A partir de uma fusão, a fotografia é mostrada por um movimento ascendente da terra ao céu, desenhando a linha que conduzirá o filme – da natureza ao cosmos. A câmera parte das pedras do chão, sobe pela montanha e termina seu movimento nos três índios cujas silhuetas no alto da montanha se recortam contra ao céu. A essa imagem se sobrepõe a imagem da lua, que terminará por circundar a cabeça de um deles e das casas circulares em que habitam. Essa estratégia de Paula consiste em “subtrair” a fotografia de seu “presente”, de sua fixidez no tempo, e em abrí-la para a sua dimensão virtual. Na verdade, se a estratégia de Kogi, seu modo de considerar a fotografia tem a ver com o  “passado em geral” de que falava Bergson, é preciso salientar que esse passado é nada menos do que o  “universo” milenar dos Kogi, sua relação (passada e presente) com a natureza – a cosmologia que os sustenta e os liga à terra e ao céu.  È  esta cohabitação atual/virtual que faz da fotografia, tal como focalizada por Gaitán, uma imagem cristal.

Superposição

Essas imagens em movimento, postas em sobreimpressão sobre as imagens fixas, são de elementos naturais: a água, as nuvens, o céu, a lua, a terra, a floresta, a montanha, a espuma. Assim como é impossível “se fixar” numa imagem única – há sempre sobreposição, há sempre duas imagens, isto é, nunca há atualização – a terra, a água, o céu, a floresta tomados como imagens a-temporais, como registros diretos da matéria de que é feito o mundo (não são situadas no tempo) sugerem a dimensão cósmica como imagem virtual coalescente com a imagem atual – a fotografia. Uma imagem cristal: ao mesmo tempo que estas sobreimpressões não representam a atualização de uma potência, elas introduzem uma virtualidade que se traduz pela “inauguração” de um mundo cósmico, aquele que sustenta o povo Kogi. A trilha sonora opera no mesmo sentido – mas por disjunção – recolhendo as mais diferentes sonoridades: vozes que falam em língua indígena, cantos, música, ruídos diversos…, sons não propriamente sobrepostos mas, agora,alinhados uns em seguida aos outros. A “duração” que Sutton aponta na fotografia se dá, no filme de Paula, por meio dessa espécie de “abertura” do tempo da fotografia – quase como se o filme operasse  uma demonstração da tese do crítico.

Subtração

Se as fusões ou sobreposições têm o dom de abrir a imagem de dentro para fora, restituindo-lhe a duração e dando origem à imagem cristal, também a superfície das fotografias é trabalhada nesse mesmo sentido da imagem-cristal, quando Paula faz uso de lentes de aumento que percorrem a imagem fotográfica e ampliam certas partes, de luzes que iluminam outras, sondando a imagem  como se se tratasse de procurar o que está “por trás” dela, de desvendar outras camadas invisíveis – isto é, sua virtualidade. Paula descreve esse tratamento como o que é feito com a imagem rupestre, à qual se chega por meio da retirada de camadas superpostas pelo tempo.

No contraponto do acréscimo de imagens que resulta nas sobre impressões, ou fusões, aqui se atua por “subtração”, retirando “camadas” de tempo à procura daquilo que é invisível – ou virtual – na imagem. Nota-se, desde logo, que a fotografia não corresponde aqui à idéia de congelamento, de morte, de ausência de tempo – ela tem vida, como diz Paula. Não apenas ela “tem vida”, mas ela constitui uma imagem cristal desde que as sobreposições e as subtrações, em vez de constituírem imagens virtuais que se atualizariam, referem-se à pura potência, à dimensão cósmica na qual vive esse povo tradicional que escolheu viver isolado para não se perder.

Marey

O filme não se limita às fotografias dos Kogi, no entanto. Ele também comporta inserções de imagens da história da fotografia, ou melhor, dos experimentos fotográficos com o movimento que antecederam ao nascimento do cinema [4]. Estas imagens dos primeiros experimentos de Marey (o vôo de um pássaro) e de Muybridge (os cavalos e seus passos) e também da pintura (uma bailarina de Degas) são intercaladas com as imagens do filme, lembrando em parte o mesmo espírito que presidiu as citações de Viagem à lua, de Meliès, em Uaká (1988).  Assim como esse filme reconhece uma busca da transcendência  – que reunia o mito Kamayurá e a magia do cinema de Meliès – em Kogi  há não apenas uma analogia entre povo primitivo e as origens do cinema; nesse registro da chegada do movimento às imagens, da passagem da fotografia ao cinema, há ainda uma analogia entre a decifração, a busca do invisível pelos experimentos de Marey e Muybridge (a imagem do movimento que a câmera não podia captar) e o  empreendimento do filme em busca do universo cosmológico dos Kogi.

[4] Imagens dos primórdios do cinema, de Viagem à lua  de Meliès (1919) são intercaladas com imagens do filme Uaká (i988), de Gaitán, que também focalizou povos indígenas: a preparação da festa do Kuarup, pelos índios Kamaiurá, do alto Xingu, Brasil. Num livro dedicado à etnografia experimental, C. Russell notou que o cinema de Meliès é, sob vários aspectos, um cinema de transição – o que é de grande interesse para o entendimento de uso que dele faz Gaitán. Viagem… realizado no limiar da modernidade, num momento em que o cinema se apresenta justamente como um modo peculiar de lidar  com o tempo. É esse novo modo de lidar com o tempo, a possibilidade da volta no passado remoto e de avanço no futuro longínquo que o cinema de Meliès vai, digamos assim, colocar em cena em Viagem a Lua.

Na sua análise do filme de Gaitán, que é tomado como “etnografia experimental”, a crítica Catherine Russell acredita que “há uma analogia implícita entre cinema primitivo e povo primitivo tomada como uma constelação discursiva sobre história, o oculto e a eternidade”. Meliès teria aproximado o aparato tecnológico de então da magia dos nativos – enquanto Paula usaria o filme deste último “não apenas como uma alegoria do cinema, mas do “primitivismo” ocidental, do desejo (partilhado com eles, poderíamos dizer)pelo conhecimento, pela viagem e pelo céu. O desejo por uma sabedoria universal encarnado na exploração do espaço é um dos níveis parodiados emViagem à lua na sua forma de arquivo e, num outro nível, historicizado e qualificado como uma epistemlogia, dentre outros tipos de conhecimento possíveis. A referência (de Paula) a Meliès é também uma referência a práticas de representação e ao estágio “primitivo” tanto da representação cinematográfica quanto da exploração do espaço.  Russell, C. Experimental Ethnography – the work of film in the age of video.  Duke University Press, Durham e Londres, 1999. pp. 77, 95 e 96.

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