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Conversas com Clarice – entre a literatura e o jornalismo

Gostaria de reunir aqui duas entrevistas das quais Clarice Lispector participa: na primeira, como entrevistada; na segunda, como entrevistadora. Além da presença de Clarice, essas duas entrevistas apresentam dois pontos em comum: ambas envolvem a participação exclusiva de mulheres e ambas são fracassadas,  isto é, não redundam na obtenção da informação desejada. A partir dessa impossibilidade de diálogo e na esteira do silêncio por ela introduzido, as duas situações delineiam um espaço nevrálgico entre a literatura e o jornalismo onde essas práticas se confrontam e se interrogam mutuamente.

O objetivo do presente trabalho é focalizar esse espaço de fricção, realçando cinco das figuras que o compõem: a entrevista propriamente dita, a pergunta, a escrita ou a linguagem, o fracasso e, finalmente, o leitor.

Na primeira das entrevistas focalizadas, Clarice é minha entrevistada. Peço licença para rememorar um tempo em que, estudante de Direito e repórter principiante no Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, mandaram-me fazer a biografia da escritora. De Clarice, na época, eu só conhecia os contos. Mas, para uma jornalista estreante, essa ignorância não era o problema maior. O mais grave é que no jornal corriam histórias sobre a enorme dificuldade em fazer Clarice falar – era conhecida como uma pessoa dificílima de ser entrevistada.

Faz parte da formação dos jornalistas o exercício do arrojo, eles são estimulados à ousadia diante de situações adversas. Uma entrevista feita nas condições que se anunciavam com Clarice exigiria alguma agressividade, aliada a uma certa capacidade de dissimulação e poderia implicar até no recurso a pequenos truques de momento. Situação ideal para o aprendizado que, naquele caso, se completaria, entretanto, num sentido bem diferente do esperado, em função de um elemento surpresa: por descuido ou desorganização, não me disseram que Clarice fora recentemente vítima de um incêndio no qual se ferira.

Cheguei com alguma ansiedade ao apartamento da escritora, no Leme. Ela mesma me abriu a porta. Ainda no pequeno corredor de entrada surpreendeu-me a sua grande beleza, o ar ligeiramente alheio, a sugerir um certo deslocamento em relação ao objetivo da minha presença. Clarice levou-me até ao fundo da sala, diante de uma janela aberta por onde passava a luz crua do verão carioca. Ao nos sentarmos uma diante da outra, estendeu-me as mãos com o dorso voltado para cima e me disse: olhe como fiquei.

Vi, no momento mesmo em que me sentava, as mãos branquíssimas cobertas por escuras cicatrizes de queimadura. Também as pernas, no movimento de se sentar, mostraram as mesmas marcas.

O gesto de Clarice não teve nada de dramático; ao contrário, pareceu-me seu modo natural de iniciar uma conversa, tomando em consideração justamente aquilo que a inquietava. Mas seu efeito foi de grande violência. Aquela imagem do sofrimento, manifestada de maneira tão direta e simples, chocou-me profundamente. As feridas contrastavam, no meu espírito, com a primeira visão da beleza impecável. Além do mais, a atitude não correspondia à reserva e até a uma certa frieza que fora atribuída à escritora pelos colegas no jornal.

Ali, diante de mim, Clarice evocava o seu sofrimento, e era como se aquela dor devesse ser o nosso ponto de partida.

O que senti em seguida foi uma precipitação de percepções e afetos difíceis de distinguir no momento, mas cujo alcance e atuação se estenderiam  ao longo do tempo. Em todo caso, dentro do estado de confusão em que me senti, algo me pareceu claro, de uma certeza que, naquele momento, eu talvez nem fosse capaz de explicar inteiramente. Eu não faria a entrevista. Àquela mulher que enunciava com tanta limpidez a sua dor, eu não poderia me dirigir como jornalista, falar uma linguagem institucional. Outra linguagem seria necessária – outras palavras, que o jornal não me oferecera e que eu talvez não estivesse preparada para exercitar. Mas, até isso, até a constatação desse desencontro de linguagens era difícil de dizer.

Como encerrar a entrevista?  Como levantar-me e ir embora sem ser brusca, sem causar uma nova dor? A conversa tateou e se generalizou, pontilhada de silêncios. Não sei se Clarice percebeu meu embaraço. Acabou me perguntando como eu fazia a maquiagem dos olhos. Com uma curiosidade coquete, indagou-me o nome dos produtos, como traçar o contorno das pálpebras. Essa conversa de mulher  suavizou o incômodo da situação e facilitou minha retirada.

Não carreguei impressão negativa desse episódio. Mesmo não me tendo enquadrado dentro das normas do procedimento jornalístico, sempre estive segura da justeza desse meu gesto. Mas todos os seus desdobramentos só se explicitariam ao longo dos anos, num lento processo de amadurecimento que, acredito, não se restringiu apenas à constituição de uma certa visão do jornalismo.

Na segunda entrevista, também fracassada, é Clarice quem rememora, na sua crônica do Jornal do Brasil, sua tentativa, também sem sucesso, de fazer falar uma dona de prostíbulo.[1]

[1] Lispector,C. “Escândalo inútil” in A descoberta do mundo , Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.

O primeiro ponto interessante desse episódio se relaciona com o móvel da entrevista. Pois aqui, ao contrário da curiosidade artificial do jornalista, o desejo de saber é profundo, absoluto e diz respeito a uma indagação de ordem metafísica: a escritora quer perguntar a dona Y qual é o sentido do mundo.  Evidentemente a escolha de tal interlocutora aparentemente tão inusitada tem a ver com a função por ela desempenhada: por lidar com o amor dos homens, argumenta Clarice, a dona do prostíbulo é a pessoa indicada para desvendar o segredo oculto nos seus corações. A crônica relata as várias e complicadas etapas da difícil aproximação entre as duas mulheres.

No início a escritora se revela temerosa quando ao seu empreendimento: tem pesadelos, dor de cabeça, receia chocar seus leitores. Também dona Y, a entrevistada, tem razões para desconfiar do interesse inusitado que desperta. Negaceia, procura se esquivar. Finalmente, a entrevista acontece, mas nenhum segredo se revela. Clarice se decepciona com a banalidade da vida de dona Y: a filha que estuda bale, o tédio da classe média, as mesmas preocupações financeiras. Apesar de dispor de tempo e da boa vontade de dona Y, deixa  a conversa morrer e volta para casa, reconhecendo seu fracasso.

Essas duas situações de desconforto e crise vividas por mulheres podem ser encaradas como momentos de ruptura e, ao mesmo tempo, de produção de novos sentidos. Dona Y acolhe Clarice em virtude de uma certa cumplicidade feminina, que não a faz temer a indiscrição de uma entrevista incômoda. Da mesma forma, uma conversa de mulher  encerra o diálogo, como na minha entrevista também fracassada (aliás, é como conversa de mulher, que Clarice se referirá ao nosso encontro, numa crônica posterior [2]). Em ambos os casos, o fracasso da entrevista redunda, também, na ampliação de horizontes para as entrevistadoras.

[2] Lispectyor. C,  “Mulher demais” in A descoberta do mundo. Op.cit.

Sem dúvida a informalidade que se estabelece nesses dois momentos tem sua responsabilidade na criação das situações-limite aqui evocadas e na explicitação das contradições em que elas implicam. Lembremos que nas duas situações se trata daquela capacidade de conversar (ou de desconversar) geralmente atribuída às mulheres, e de criar possibilidades de aproximação mesmo quando as normas sociais ou a formalidade impõem barreiras de contato – esse é bem o caso da entrevista com dona Y. Faz parte das virtudes desse falar feminino – em geral tomado como um “defeito” – a capacidade de romper com os contextos e de inaugurar novos e outros territórios de entendimento.

Desde logo, torna-se também evidente que o outro ponto comum às duas entrevistas – o fracasso – não poderia mais ser tomado num sentido negativo. Pois em ambas, fracassar no sentido jornalístico.

Texto apresentado no encontro da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística, 1990, Porto Alegre. Publicado em Borneo Funck, S. (org.) Trocando idéias sobre a Mulher e a Literatura, Pós-Graduação em Inglês e Literatura, Universidade Federal de Sta Catarina, s/d.
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