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As duas viagens – a propósito de os Arara

Este texto foi escrito em 1983, quando os experimentos de Andrea Tonacci com os índios já tinham sido encerrados, tendo o diretor realizado apenas dois filmes – Conversas no Maranhão e Os Arara – a partir  das muitas dezenas de horas gravadas nos anos 70, nas aldeias por onde passou. Eu começava, por minha vez, a entrar em contato com os índios, e Tonacci me emprestou os dois filmes. Eles praticamente não tinham circulado; do mesmo modo, a questão indígena e, sobretudo, os filmes voltados para essa temática não tinham ainda entrado na ordem do dia. Encantada com o trabalho do diretor, reagi imediatamente com esse pequeno texto, que lhe ofereci.

No mesmo ano, a pioneira revista Arte em São Paulo (julho/agosto, 1983), editada por Lizette Lagando e Marion Streter deu generosa acolhida ao texto, cujo interesse, com a passagem do tempo, se tornou, antes de tudo, histórico.

O texto é publicado na forma como o foi em 1983, tendo sofrido apenas um ou outro ajuste de edição.

Há duas viagens em cena.

A primeira, do indigenista, é um deslocamento sobre o mapa. É da mesma natureza das viagens que nos deram esse modo de representação, e delas difere apenas em grau. Em vez da ocupação, ela consagra o espaço como lugar da separação: reservas, territórios, zonas interditadas de proteção.

A segunda viagem – do diretor – se passa no plano da imagem. Cabe à câmera a construção desse novo espaço, que não configura uma representação mas traça um vetor: linha de convergência entre o viajante e o espectador.

Os Arara, expulsos de seu lugar, não integram do mesmo modo a narrativa dessas duas viagens. Eles também viajam, mas não há mais nenhuma afirmação no seu modo de se deslocar. Eles recuam, fogem ao campo de significação dos brancos, e a fuga é a consagração da perda definitiva de seu espaço.

O primeiro viajante traz na sua bagagem um conhecimento, que lhe permite situar os Arara na sua cadeia de significados: o indigenista recolhe e distribui signos – e o contato é a troca desses signos, promovida pelo mundo branco. Ele é o último, e provavelmente o mais sofisticado dos representantes da ordem: sua tarefa é a comunicação.

Também o cineasta lida com os signos, mas não é do comércio da significação que ele se ocupa. Esta floresta, este rio, este ar reverberam encantamento, e a natureza vibra como uma emoção. Alheia ao alcance calculado da mensagem, é uma intensidade que se propaga nesses signos. A viagem do cineasta é o trajeto do encadeamento entre eles, que inaugura uma outra qualidade de presença no espaço, não mais da ordem culpada da ocupação, nem tampouco da ordem condenada do abandono.

Entre a do indigenista e a do índio, uma outra trajetória se propõe, solitária: a da imagem como superfície de pulsação.

Publicado in
Revista Arte em São Paulo,  n. 17. Julho/agosto 1983.
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